Baseado em fatos, o experiente diretor Paul Verhoeven nos traz uma história polêmica, cheia de fé e erotismo, embaralhando em tela o sagrado e o profano.
Estabelecido no cinema internacional por seus filmes de ação nos anos 80 e 90, como “Robocop” (1987) e “O Vingador do Futuro” (1990), o diretor holandês Paul Verhoeven chega aos 83 anos atiçando audiências internacionais com história polêmicas, ousadas e cheias de personalidade. Seu trabalho anterior, “Elle” (2016), provocou burburinhos no cinema por um extensa e completa cena de estupro, e levou a excelente atriz francesa Isabelle Huppert à sua primeira indicação ao Oscar. Agora com “Benedetta“, Paul consegue aumentar ainda mais o tom, cutucando a Igreja Católica ao abordar a história real de uma freira italiana lésbica no século XVII.
A história de Benedetta Carlini (1591-1661) foi contada por Judith C. Brown no livro “Atos Imodestos: a vida de uma freira lésbica na Itália renascentista“, que serviu de inspiração para o roteiro de Verhoeven e David Birke. O que se sabe é que a religiosa fora levada ainda criança pela família ao Convento da Madre de Deus na cidade de Péscia, região Norte da Itália. Lá, começou a ter visões da Virgem e de Jesus. No filme, a primeira manifestação de seus “poderes” ou predestinação é revelada quando uma estátua gigante da Virgem cai sobre ela ainda criança. O que poderia tê-la matado, de fato se torna um sinal de amor visto com inveja por muitas companheiras de clausura, estabelecendo antagonismos que iriam se intensificar ao longo dos anos. Presa debaixo da estátua, antes de ser resgatada pelas outras irmãs, a pequena Benedetta mama no seio à mostra da Virgem.
Aos 30 anos, Benedetta (vivida com a energia ideal pela excelente Virginie Efira) tem sua vida religiosa confrontada pela chegada de Bartolomea (Daphne Patakia), que pede ajuda às irmãs contra os abusos de seu pai e irmãos. A chegada desperta um frisson sexual entre as duas que logo evolui para um romance às escondidas, fazendo com que as visões místicas da freira se intensifiquem, num misto de culpa religiosa e delírio desejante.
Aos poucos, a freira começa a ser vista como uma profeta, tornando-se um problema para a Abadessa Felicitá (Charlotte Rampling), responsável pelo convento. Quando as chagas surgem em suas mãos e pés, como os estigmas de Cristo, Benedetta começa a ser vista com devoção pela cidade, ao mesmo tempo que levanta suspeitas entre as irmãs quanto a veracidade de suas intenções. O episódio desperta a atenção da hierarquia clerical, à época engajada na Contrarreforma, num contexto em que a Europa era dizimada pela peste. O fato da doença ainda não ter chegado na cidade também é creditado entre os milagres de Benedetta, dramaticamente traduzido em tela pela passagem de um cometa sobre a região.
“Benedetta” é um filme de forte impacto visual, com rica cenografia e direção de arte. O elenco, predominantemente feminino, tem o tom certo, entre o mistério e a intriga palaciana. A relação das protagonistas é ao mesmo tempo erótica e companheira, às vezes quase como duas crianças se divertindo entre as grossas paredes da clausura. Verhoeven, por sua vez, não tem melindre em mostrar o erotismo explícito, por vezes violento, como já fizera em outros de seus clássicos, como “Instinto Selvagem” e o já mencionado “Elle“. O roteiro também nunca explicita se os milagres de Benedetta são reais ou fruto de sua artimanha. Embora revele um comportamento calculado da freira, as cenas em que ela aparece “possuída” por um Deus raivoso, que se ergue contra aqueles que duvidam de sua “esposa” (como as freiras de denominam), também não deixam claro se se trata de encenação — embora sua voz fique claramente transformada, num estilo clássico de possessão.
A história é extremamente corajosa e possivelmente desagradará aqueles que não aceitam ver seus deuses retratados de maneira pouco usual nas telas. As aparições de Cristo são momentos de alto impacto, por vezes surgindo quase como um super-herói, provocando no espectador a mesma catarse de uma visão mística como as que a freira alega ter. Seu suplício religioso e erótico se assemelha a outras conhecidas histórias na Igreja, como a de Teresa D’Ávila, que relatou em suas Confissões suas visões também erotizadas de Cristo.
Em entrevista, o diretor revelou que seu filme “fala muito pouco de Deus”, numa tentativa de contornar os ataques religiosos sobre a obra, dando enfoque ao que realmente ele que contar aqui. Inicialmente o projeto teria o nome de “Blessed Virgin” (“Virgem Abençoada”, em tradução livre), que foi alterado até sua estreia no último Festival de Cannes. O mais impactante de Benedetta talvez seja não se tratar de um longa meramente erótico, feito para chocar, como, por exemplo, “Ninfomaníaca“. Não há cenas de mau gosto, em que o sexo ou erotismo surjam gratuitamente, embora ele nem sempre tenha boas conotações na história e, a partir de determinado momento na jornada da protagonista, comece a surgir como uma compulsão descontrolada e destrutiva.
A história da freira Benedetta Carlini é, antes de tudo, impressionante, e é isso que o bom cinema busca contar. Terminar a sessão sem querer pesquisar e descobrir mais detalhes sobre a vida dessa figura real seria passar indiferente por uma história que beira o surreal pela ousadia e contexto em que ocorreu. O olhar corajoso, frio e direto de Verhoeven para nos contar um pouco da jornada dessa figura fascinante talvez seja o principal trunfo desse que certamente é um dos melhores da sua época.