Longa de estreia de Maggie Gyllenhaal na direção possui atuações memoráveis e traz um olhar inovador sobre a maternidade em todas as suas complexidades.
Outrora, Simone de Beauvoir disse que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. A frase da filósofa francesa consegue resumir em poucas palavras uma ideia que se apresenta cada vez mais veraz: a condição de ser mulher é construída a partir de categorizações, símbolos e comportamentos influenciados pela sociedade em que elas estão inseridas. Dentre essas construções, a da maternidade surge como uma das mais agudas e exploradas entre as expressões artísticas, especialmente pelo audiovisual.
Durante os anos 1950, saias rodadas de bolinha e cabelos perfeitamente penteados tomaram conta das televisões estadunidenses, e a visão de uma “mãe/mulher perfeita” (a que cozinha, limpa e cuida dos filhos e do marido de maneira impecável e sem nenhuma dificuldade aparente) foi implantada na mente dos Estados Unidos e do restante do ocidente. Com o tempo, essa noção foi se modificando e passou a ser concebida a partir de mulheres destemidas e corajosas, que enfrentam monstros e qualquer tipo de adversidade para proteger sua família. Assim, mesmo que em moldes diferentes, a ideia da mulher como um ser que carece de falhas permanece, mas é justamente no caminho oposto a isso que Maggie Gyllenhaal conduz seu filme de estreia na direção, “A Filha Perdida“.
Baseado na obra homônima de Elena Ferrante, o longa retrata a história de Leda (Olivia Colman em sua versão mais velha, e Jessie Buckley na mais jovem), uma mulher de meia-idade e tradutora de italiano tirando férias em uma ilha grega. Logo em seus primeiros dias no local, ela entra em contato com uma família nova-iorquina e se torna obcecada por Nina (Dakota Johnson) e sua filha pequena. Ao observar, de longe, as dificuldades de Nina para lidar com sua filha, Leda começa a relembrar de seu passado como mãe e tem seu corpo invadido por crises de ansiedade causadas pela culpa que sente por não ter priorizado suas filhas e tê-las abandonado por anos.
Essas lembranças vão sendo apresentadas em forma de flashbacks, como peças de um quebra-cabeça que precisa ser montado para entender a natureza inquieta da protagonista. A cada peça encaixada, compreendemos que Leda, já amadurecida e consciente do caráter infesto das escolhas que fez em sua juventude, é uma refém de si mesma, e que seu passado está tão intrínseco em seu organismo que acaba acometendo cada aresta de seu presente. Isso é traduzido por Olivia Colman em todas as suas falas e trejeitos, os quais estão constantemente acompanhados de gestos (o olhar apavorado, o andar desconfiado, a “esquisitice” quase cômica) que revelam a ansiedade, paranoia e obsessão que dominam seu corpo e mente. Mas, ao mesmo tempo, o semblante acolhedor e amável estampado em seu rosto transparece o lado materno da personagem, mesmo ela não admitindo a sua existência — “sou uma mãe desnaturada”, é o que ela diz em um dos diálogos.
Se a versão mais velha de Leda é marcada pelas sequelas deixadas pelo passado, sua versão mais jovem carrega a destreza de quem ainda tem o privilégio de viver uma vida sem arrependimentos. Ela é audaz, energética, independente e passional. Porém, essas características são abafadas pela exaustão do dia a dia de cuidar de duas crianças praticamente sozinha, e a agressividade provinda da frustração do cotidiano se torna enfática. Nas mãos de Jessie Buckley, isso é acentuado por sua atuação eloquente, que aposta em uma linguagem corporal robusta e ríspida, mas, também, sedutora e charmosa.
Além das atuações empenhadas de Colman e Buckley e da complexidade da protagonista, “A Filha Perdida” também vai se arquitetando a partir dos personagens coadjuvantes. A família com a qual Leda se depara na ilha traz consigo uma tensão que impera até as últimas cenas. Constrói-se uma frequente expectativa de que uma tragédia está prestes a acontecer, e a espera para que isso aconteça coloca na mente do espectador a mesma paranoia sentida por Leda — cada ato parece suspeito, cada fala parece clandestina, cada local parece arriscado. Assim, logo nos vemos embriagados pela história que ali está sendo contada, e mesmo que se prolongue um pouco demais, ela nos captura até o fim.
Contudo, a tensão presente no filme vai além de seus personagens. Há um elemento de violência que percorre toda a atmosfera do filme e se faz cristalina por causa do roteiro também assinado por Maggie Gyllenhaal. O olhar realista com o qual a maternidade é retratada pelo texto, sem nenhum tipo de tabu ou julgamento, é agoniante e até mesmo brutal em alguns instantes (os flashbacks, especialmente, chegam a ser dolorosos de serem assistidos). Esse olhar se amplifica quando a direção se entrelaça com a montagem de Affonso Gonçalves e a fotografia de Hélène Louvart, e cada detalhe do ambiente e das atuações é exposto microscopicamente.
Porém, esses detalhes são desenvolvidos com tanta sutileza (aqui, a trilha sonora de Dickon Hinchliffe entra em cena brilhantemente), que tudo aquilo de agoniante e brutal do longa, também se mostra gracioso e afetuoso. E é justamente aí que está o grande triunfo de “A Filha Perdida”. É abordar um assunto tão delicado apresentando todas as suas facetas, das mais belas às mais hediondas, e, assim, subverter a ideia impressa por produções que o antecederam de que as mulheres, especialmente se forem mães, são super-heroínas capazes de lidar tranquilamente com qualquer tipo de atribulação, e tratá-las como o que elas de fato são: seres humanos.