Woody Allen cria uma nova metalinguagem cinematográfica para tratar de mais uma variação de um mesmo assunto: ele mesmo.
Quando parece exaurir seu olhar sobre sua Nova York natal, o cineasta Woody Allen vai em busca de histórias que estejam intrinsecamente ligadas aos cenários que habitam. Assim, nas últimas décadas ele foi cobiçado por cidades do mundo todo — inclusive à certa altura pelo Rio de Janeiro — que queriam ser locações de suas dramédias autorreferenciais. Alguns dos exemplos mais bem sucedidos foram “Vicky Cristina Barcelona” (2008) e “Meia-Noite em Paris” (2011). Agora, em “O Festival do Amor“, Allen homenageia um destino menos mainstream para apresentar, antes de tudo, uma homenagem pessoal ao cinema, mantendo as características mais recorrentes de suas histórias, como a personificação de um alter ego de si mesmo e o tom neurótico que move a trama.
Na história, Mort Rifkin (Wallace Shawn) é um professor de cinema desiludido, cheio de sarcasmo e neuroses, que acompanha a esposa Sue (Gina Gerson) ao Festival de San Sebastian, no litoral da Espanha. Sue trabalha como assessora de imprensa e está dedicada à divulgação do trabalho de um jovem e promissor cineasta francês (Louis Garrel). Sozinho pela cidade, Mort reflete sobre o cinema, nostálgico dos filmes clássicos, quando começa a notar uma aproximação suspeita entre o diretor e sua esposa, enquanto ele mesmo conhece uma médica (Elena Anaya) que lhe desperta um interesse inesperado.
A trama repete temas recorrentes do diretor, amores, neuroses, lembranças da infância e de Nova York e o universo do cinema, delimitando ainda mais os temas do cineasta. Allen talvez seja um dos realizadores mais recorrentes ainda em atividade, apresentando há anos variações de um mesmo assunto: ele mesmo. Completando, com esse, 50 filmes dirigidos, podemos identificar facilmente obras muito parecidas, especialmente aquelas que retratam de forma mais evidente uma transferência de si mesmo nos protagonistas, como “Tudo Pode Dar Certo” (2009), “O Homem Irracional” (2015) e agora ainda mais intensamente “O Festival do Amor”. Não nos esqueçamos, porém, que em grande parte de sua carreira vimos um trabalho inventivo e dinâmico, com filmes distintos e inovadores como “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa” (1977), “Manhattan” (1979), “Zelig” (1983) e tantos outros.
Reunindo mais uma vez um elenco de peso, aqui não escapamos de um lugar que parece confortável para o cineasta realizar aos seu 86 anos de idade — diferente, por exemplo, de Martin Scorsese, que aos 79 anos parece um garoto buscando inovar a cada projeto. Com fotografia impecável de Vittorio Storaro, o mestre italiano por trás de Apocalipse Now (1979) e O Conformista (1970), o ponto alto dessa história são as paródias de algumas das cenas mais famosas do que é chamado de cinema clássico. Nesse momentos, Allen parece brincar de refazer o que seus cineastas favoritos fizeram, reconstruindo as sequências clássicas que inspiraram seu cinema, a partir das obras de Ingmar Bergman, Luis Buñuel, Frederico Fellini e os mestres da Nouvelle Vague.
Criando mais uma vez uma metalinguagem cinematográfica, como fez no recente “Um Dia de Chuva em Nova York” (2019), Allen aproveita o contexto de sua história para brincar com o cinema, refletir sobre ele, criticar o contexto atual (como a pretensão dos jovens realizadores emulado pelo personagem de Garrel) e ainda deixar claro as fontes em que bebeu para construir uma das cinematografias mais profícuas e uma das carreiras mais conhecidas e polêmicas da sétima arte.