Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 19 de dezembro de 2021

Succession (HBO, 3ª Temporada): a shakespeariana tragédia da atualidade

Apaixonada pela complexidade de suas personagens, a terceira temporada da melhor série da atualidade prioriza a construção de seus protagonistas para se efetivar como plataforma de escárnio voltada ao esvaziamento humano.

Quando chegou à televisão três anos atrás, “Succession” tinha tudo para ser mais uma genérica atração sobre a corrupção humana provocada pelo poder. Apresentando grandes marcas, ricaços engravatados e interesses revestidos por ternos luxuosos, pouco apontava para o ineditismo da narrativa que estaria por se contar. Fazendo jus aos diversos prêmios que já recebeu, entretanto, não há como negar o brilho da criação de Jesse Armstrong, roteirista britânico que desenvolveu com as próprias mãos um aprofundamento de relações problemáticas como não se vê na atualidade. Ao chocante final de sua terceira temporada, a série original da HBO demonstra assim que bases e temas comuns – por mais explorados que já tenham sido – ainda podem dar origem à tramas dignas de um desenvolvimento sem precedentes.

Partindo do surpreendente golpe orquestrado por Kendall (Jeremy Strong) contra seu pai, o lendário empresário Logan Roy (Brian Cox), o terceiro ano do seriado oficializa rixas que há muito já aconteciam por debaixo dos panos, colocando sob os olhos da mídia o enorme atrito entre o grande dono da Waystar Royco e aquele que um dia já foi o seu herdeiro aparente. A responsabilização do próprio pai pela política de ocultamento de assédios institucionalizada pela empresa acirra ainda mais os choques entre os membros da tríade formada pelo irmão já mencionado, pela duvidosa Siobhan (Sarah Snook), e pelo igualmente problemático Roman (Kieran Culkin), impossibilitando qualquer tentativa de reconciliação. Tem-se assim a evolução de uma guerra civil há muito proclamada, capaz de atropelar até as mais firmes ligações de sangue.

Exímios na subversão de expectativas, os episódios da vez possuem como primeiro destaque a desconstrução de triunfos morais com os quais algumas figuras específicas tentam flertar. Visto, ironicamente, e durante o hiato que separou o segundo ano da nova leva de capítulos, como uma espécie de “salvador”, parece até óbvio analisar o contraste entre imagem e essência que acaba se arquitetando em torno da figura de Kendall Roy. Por mais que trajetórias similares já tenham sido traçadas na televisão, entretanto, poucos arcos recentes da cinematografia têm-se mostrado tão aprofundados, e são menos numerosos ainda os alavancados pelo impressionante alcance de Jeremy Strong.

Movido por instintos – e demais fatores esguios – que parecem afastar a sua mente de duros erros de seu passado, o desespero do protagonista em revestir a si mesmo com os mais supérfluos indicadores de apoio se torna extremamente latente. Eleito como um dos grandes focos da atração como um todo – que desde o piloto já demonstrava um maior “afeto” por essa complexa personagem -, esse destaque acaba proporcionando falas angustiantes – e que ilustram a enorme habilidade da mesa de roteiristas na construção de diálogos – e passagens devastadoras como a opressora festa de aniversário apresentada no episódio Too Much Birthday.

Para além de outras obras, e até mesmo das temporadas anteriores, o interessante aqui é perceber como tais avanços nem sempre se vêm obrigatoriamente associados aos acontecimentos mais dinâmicos do contexto geral, havendo bastante espaço para a maturação orgânica dessas figuras. Tidos como fillers, aos olhos de alguns, episódios como o já mencionado aceleram os acontecimentos em pouquíssimos aspectos, mas nem por isso deixam de servir a cruciais avanços de personalidade e exibir, por meio da exuberante criação de ambientes, metáforas que amplificam os distanciamentos entre aparência e verdade. Tudo isso sem que o ritmo da produção seja comprometido, haja visto os inteligentes ganchos deixados por entre toda a maratona, que em momento algum deixa de crescer também ao redor do conflito principal.

Dessa forma, encontramos uma estrutura que concilia habilmente a construção das personas que a permeiam e os eventos que as orbitam, mesmo que as primeiras nunca deixem de ser, felizmente, o centro das atenções. Essa priorização, inclusive, é o que acaba consolidando a deliciosa lógica de dependência que predomina a todo momento, tornando nítido o quão necessário é o status material que reveste os formadores da família Roy. Isso está presente não apenas nos grandiosos planos abertos, que intercalam a fragilidade interna daqueles que o observam com a imponência da natureza, e na escala pujante demonstrada pelas regalias “banhadas a ouro” – caso dos numerosos helicópteros e das colossais residências, ocas e incapazes de fornecer o que lhes falta -, como também, e, principalmente, nas precárias relações que estabelecem uns com os outros.

Especializados em falas bastante enfeitadas – que reforçam a falsidade com a qual são construídas, imersas em uma orquestra artificial da qual não conseguem escapar -, não há como negar que todas as relações estabelecidas entre as personagens se baseiam em demonstrações de poder, inexistentes caso não vistos pelos demais. Nesse sentido, é trágica a enorme influência que Logan, o patriarca cujos palavrões e gestos de crueldade são extraordinariamente incorporados por Brian Cox, exerce sobre os seus filhos. Se ao menos os complexos de Kendall garantem cenas exclusivas, livres para existir, mesmo que sob miseráveis condições – e que, inevitavelmente, são ainda condicionados pela crônica urgência em receber aprovação de seu progenitor- , são poucos os momentos solo que seus irmãos mais novos garantem para si.

Seja pela sexualmente obsessiva relação que tenta desenvolver com Gerry (J. Smith-Cameron), ou pelo simples desejo de se exibir como a mais efetiva opção na liderança da empresa, a norma que leva o medroso Roman a atuar na base de humilhações e exibições de força são parecidas com as que operam sobre Shiv, mestre no uso de seu marido, Tom (Matthew Macfadyen) e dona de uma insegurança patológica que a aprisiona em um eterna variação entre a busca por reconhecimento paternal e a vontade de destruir completamente o último. Desse modo, fica claro que tais figuras são insignificantes em um campo que não exija tais atritos, tendo a sua natureza deturpada coletivamente construída, longe de seu próprio controle.

Partindo desses aspectos, e embora explore essa potencialidade do homem para o mal de muitas outras formas brilhantes – caso da parceria aprimorada que se desenvolve entre o cômico primo Greg (Nicolas Braun), corrompido por sua ignorância auto fingida, e Tom Wambsgans, agora movido pelo temor de sua prisão eminente -, talvez o maior trunfo de “Succession” esteja na banalidade com a qual o seriado reconhece essa camada humana. Jamais se voltando à flashbacks que tentem justificar certos comportamentos, e nunca adotando crescimentos óbvios e maniqueístas que humanizem os seus rostos centrais, a série assume essa evidente, e predominante, parcela de seus protagonistas. Isso não apenas amplifica todos os comentários críticos sendo destilados – caso da notável despreocupação de Kendall com a causa que diz defender, priorizando a sua autoimagem -, como também desafia a relação com a plateia, que mesmo diante de tantas demonstrações de esvaziamento não consegue se desconectar totalmente da empatia que nos leva a acreditar nos outros.

Provavelmente é esse último fator o que mais alavanca a tragédia que reveste a atração como um todo, desconstruindo centelhas de esperança de forma orgânica e inserida em um submundo de narcisismo e dependência imagética que em muito se aproxima do real. Não restrito às esferas mais ricas da população, a produção de Jesse Armstrong consegue analisar assim a complexidade humana generalizada com um dinamismo poucas vezes visto antes, resgatando as raízes da dramaturgia clássica que tornaram figuras como William Shakespeare tão influentes. Se o último elegia as grandes cortes medievais como palco para o estudo de nossa natureza, o seriado da HBO atualiza essa dimensão, mas sem abdicar da enorme coragem do dramaturgo inglês: o reconhecimento de sua incapacidade em definir completamente a essência humana, adotando no processo não apenas o drama, mas também a comédia acidental, cuja frieza amplifica ainda mais as cicatrizes compartilhadas entre todos.

Mesmo que já passe a apontar, finalmente, para possíveis caminhos de redenção, “Succession” tem a sua sabedoria no fato de jamais se julgar totalmente conhecedora da multiplicidade de nossa espécie, orquestrando – e tudo isso ao som da magnânima trilha sonora de Nicholas Britell, que harmoniza o clássico ao moderno para extrair o trágico – diferentes ângulos para explorar ao máximo, justamente, essa incapacidade de aprimoramento pessoal. Dessa forma, a paciência da terceira temporada surpreende pela forma como contrapõe a repulsa e a compaixão que nos faz ser capaz de sentir por suas personagens, criando um espetáculo múltiplo e deliciosamente tragicômico, do qual se torna impossível se desvencilhar.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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