Estreia na direção do aclamado ator Wagner Moura debate a liberdade e recupera a história de uma das figuras políticas mais polêmicas do Brasil.
Dois anos depois de sua estreia no Festival Internacional de Berlim, “Marighella“, longa que marca a estreia do ator Wagner Moura na direção, chega aos cinemas do Brasil. Baseado no romance “Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo“, de Mário Magalhães, o filme tem o roteiro assinado pelo diretor junto a Felipe Braga (da série “Sintonia“), e reconta momentos dos últimos anos da vida do poeta, escritor, ex-deputado e líder revolucionário baiano na luta contra a Ditadura Militar.
O projeto tem causado polêmica desde sua produção, seja por tratar da cinebiografia de um líder comunista num momento politicamente conservador do país, ou mesmo pela escalação de Seu Jorge no papel título. O fato é que “Preto”, como Marighella era chamado pelos amigos, ganha vida numa interpretação brilhante do cantor/ator e o filme de Moura se torna um dos principais lançamentos cinematográficos do país em tempos, não apenas pelas qualidades técnicas, mas por seu valor cultural e político. Goste do biografado ou não.
A linha narrativa que conduz a história é a relação entre o revolucionário e seu filho de 15 anos. Nesse sentido, é a história de um homem forçado a se afastar do filho enquanto luta contra um regime político opressivo que prende, tortura e mata seus conterrâneos. O filho vai para a Bahia viver protegido, enquanto Marighella permanece no centro urbano, afim de organizar a luta armada contra a ditadura. Enquanto isso, as forças da repressão se organizam em sua caçada e na de seu bando, com apoio da diplomacia dos EUA e liderados por um detetive com sangue nos olhos (Bruno Gagliasso), cujo único objetivo é “matar preto e matar vermelho”.
O contexto repressivo em que a história se passa não encontra melhor timing para ser debatido no Brasil e o roteiro tem uma meia dúzia de sutis indiretas aos arroubos autoritários contemporâneos, que em alguns sentidos se assemelham aos dos anos 60. Antítese do que alguns hoje defendem, a obra foi atacada antes mesmo de sua estreia por robôs digitais, milícias ideológicas que encheram o site do IMDb com más avaliações. A página do filme chegou a sair do ar e o site foi, por isso, forçado a mudar suas regras de avaliação.
A direção de Moura, com fotografia do argentino Adrien Teijido, dá um tom de aventura policial necessária para que a história não escorregue para a cinebiografia romantizada, embora haja uma clara abordagem favorável ao protagonista, numa clássica jornada de herói. Melhor do que a câmera tremida, estilo “Tropa de Elite” ou “Cidade de Deus“, é a escolha por belíssimos planos sequências que coroam todo o filme. Sobretudo o plano inicial, que abre o filme, passado em um trem, num estilo parecido com o famoso plano sequência de Juan José Campanella e Félix Monti em “O Segredo dos seus Olhos” (2009).
É um prazer assistir a um drama histórico bem feito, com alto valor de produção, em que a reconstituição de época não parece uma obra forçada ou evidentemente artificial. Com orçamento indicado de US$ 4 milhões, entende-se a longa lista de coprodutores associados e fundos de financiamento necessários para sua realização. Repleto de cenas externas, é admirável como vemos vida em cada elemento de cena, mesmo os de segundo plano. Com isso, para quem vive ou conhece o centro do Rio e de São Paulo, são vários os espaços reconhecíveis e causa espanto ver tamanha transformação a fim de nos transportar aos anos 60, os “anos de chumbo” no Brasil.
Depois de um longo drama para seu lançamento, adiado tanto por conta da pandemia, quanto pelo boicote da atual gestão da Agência Nacional de Cinema (Ancine) a sua distribuição, “Marighella” chega aos cinemas nacionais em 4 de novembro, aniversário de 52 anos de sua morte, assassinado por forças da repressão militar numa emboscada em São Paulo. Seu papel na História do Brasil ainda está em disputa entre aqueles que o acusam e os que o têm como herói.
O maior sucesso do filme de Moura é trazer ao debate essa figura central da nossa história política recente, ainda que com um viés claro sobre o personagem, o que não agradará a todes. Sendo Seu Jorge como Marighella, trazer essa figura sob a ótica de nossos tempos carrega uma mensagem muito clara, apontando um país que ainda hoje considera homens pretos, pobres, mulheres e outras minorias que ousam erguer sua voz como “inimigos do Brasil”. De qual Brasil se referem esses homens fardados que sequestram a liberdade de um povo, qual visão de país eles defendem, é o que todos os corajosos ousam questionar.