Ciente de sua própria artificialização, Leos Carax faz declaração de amor aos musicais e utiliza de sua liberdade para exorcizar alguns demônios que o próprio cinema é capaz de fundar.
Dirigido por Leos Carax, é estonteante a maneira como “Annette” inova justamente por resgatar o clássico, arquitetando corajosamente uma grandiosa epopeia musical que em momento algum renega o poder que a imagem consegue exercer sobre o nosso imaginário.
Profundamente apaixonados, o comediante Henry (Adam Driver) e a atriz Ann (Marion Cotillard) apreciam o florescer de seu casamento enquanto decolam em suas carreiras individuais. Após o envolvimento do humorista em uma série de controvérsias e o nascimento de sua misteriosa filha, entretanto, o relacionamento dos dois passa a se tornar bastante turbulento. Decifrando pouco a pouco as verdadeiras camadas escondidas através da reluzente imagem de casal perfeito, essa é apenas uma fração da alucinante trama que a produção apresenta, imersa em uma vibrante identidade que não cessa nunca em se reinventar.
Utilizando uma assinatura extremamente estilizada, contagia a forma como a direção compreende a liberdade oferecida pelo gênero explorado, incorporando essa lógica mais superficial no enredo e na linguagem apresentada. É como se tudo precisasse ser espetacularizado, escolha que acompanha não apenas a própria trajetória das personagens como também estabelece uma dimensão metalinguística. Por meio da literal externalização de sentimentos perpetuada pelas canções, entre outras ferramentas, Carax atravessa a quarta parede e alerta para a dependência que depositamos nessas narrativas, cabendo a nós, como espectadores, a manutenção de ídolos em uma dimensão supranatural.
Essa dicotomia entre público e estrela para o além da tela fica muito bem estabelecida na concepção dos shows de Henry, por exemplo. Diferentemente de sua segura esposa – que em suas performances até converte alguns objetos cênicos em fantasia, mas jamais se projeta para fora do palco -, ele trava embates ao dividir alguns enquadramentos com a sua plateia, conforme os longos travellings em que a plateia obstrui a imagem até o protagonista. Está determinada assim a urgente necessidade que a personagem possui em relação à aprovação daquela mesma, ânsia por conexão que, nos planos em que fogem a sua presença, flertam até mesmo com aqueles que escapam à diegese ali apresentada.
Não suficiente, esse desejo doentio pela manutenção do status também é aplicado ao conflito entre essência e simulacro. Aqui, isso se dá justamente pelas luzes e pelas sequências mais ambiciosas, que resgatam a atmosfera teatral – e ao mesmo tempo “fragilizam” as construções cinematográficas, munindo-as de exageros visuais -, artifícios que sugerem a dificuldade de se desvencilhar perfis genuínos das meras projeções moldadas pela percepção alheia. Até mesmo as cenas mais simples – vide a sequência final ou a de uma simples caminhada, por exemplo – quando munidas de canções espalhafatosas, expressam uma dualidade muito atrativa, como se o viver comum se perdesse na fusão entre o público e o privado. Somos, assim como aqueles que acompanhamos, meros personagens? Estaríamos fadados a tentar cultivar, manipulados, falsos indícios de propósito para afastar a ideia de nossa inutilidade?
Questionamentos como esses ficam muito bem expressos na trajetória da figura de Driver, na materialização de Annette como boneco de madeira – uma marionete, controlada por seus pais, incapaz de determinar a sua própria identidade – e na superficialização geral do projeto, que evoca grandes e fantasiosos cenários para unir a forma fílmica clássica à moderna. Esse conjunto acaba transpirando magia e falsidade notáveis, para justamente dificultar a definição daqueles diante de nossos olhos, presos entre aqueles que desejam ser e aqueles que a aprovação os força a se tornar.
Mais do que isso, o uso constante de novos recursos – embora se esgote em algum momento – condiz com o papel das ferramentas online que, em alguma instância, o filme transmite, principalmente no que tange à constante sujeição de nós mesmos a milhares de estímulos no contexto da pós-modernidade. Nada basta, tudo muda imediatamente, anestesiando o público que mal consegue acompanhar essa obsolescência. Estamos sempre nos transformando e em adaptação a novos princípios, como sequer ter conhecimento acerca de nossa essência?
Ainda nesse viés, tudo se torna ainda mais profundo quando considerada a ligação pessoal do diretor com o projeto, que tem em sua vida um próprio fantasma pessoal para lembrá-lo constantemente da sua falecida esposa. É assim que percebemos como essa espetacularização desconstrói a própria natureza, subvertendo a finitude associada a ela e criando espectros sustentados por seus legados.
Como um todo, “Annette” reinventa o cinema musical por construir sua identidade justamente através da artificialização oferecida pelo mesmo. Em um mundo onde tudo é performado e opiniões alheias definem quem nós somos, tem lógica uma obra que utiliza dessa caricatura para discutir sobre o abismo existente, em alguns de nós, entre imagem e espírito. Mais do que isso, todavia, é uma bela obra sobre os papéis que atribuímos aos demais, por vezes íntimos e ligados àqueles que primordialmente somos, mas que acabam desumanizados e preparados para nos assombrar, destituídos da genuinidade que deveriam carregar na conexão entre diferentes seres.
“Annette” está em sessões da 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo até dia 3 de novembro, e será lançado em 26 de novembro no MUBI Brasil.