No único longa de sua carreira, Steve De Jarnett impressiona ao entregar um corajoso conto sobre o amor como combustível para a persistência do aprimoramento humano.
Em meio à iminente destruição do mundo, uma relação genuína luta por sua continuidade. É a subversão do refinamento da capacidade humana de se cortar laços, uma evolução que só pode ser alcançada por meio de um retrocesso. E é ao materializar essa resposta através do amor que o diretor Steve De Jarnatt entrega um belíssimo exercício de linguagem cinematográfica, constituindo o único filme de sua carreira.
Desafiando a desumanização que os avanços científicos são capazes de proporcionar, “Miracle Mile” conta a história do historiador Harry (Anthony Edwards), um homem especializado em acontecimentos do passado mas que nunca encontrou oportunidades para garantir um futuro significativo. No entanto, tudo se transforma quando ele conhece a encantadora Julie (Mare Winningham), uma jovem garçonete apaixonada por vestígios de outras eras. Pouco depois da união trazida pelo destino, todavia, é descoberta a iminência quase imediata de uma Terceira Guerra Mundial, e Harry fará o possível para compartilhar com sua amada a provável última noite de suas vidas.
Bastam os poucos minutos da leve e divertida sequência inicial para a direção estabelecer a desconexão evidente entre o laço que unifica as duas personagens centrais e a lógica que o universo ao seu redor adota. Por entre piadas e risadas, ambas avançam em frente a exibições de um museu que estruturam explicações sobre a história do ser humano, o que transparece a paixão que floresce como a grande responsável pelo desenvolvimento de nossa espécie como sociedade. Isso sem mencionar o genial quadro de abertura no qual um trombone desfocado divide a tela com as luzes artificiais da cidade, determinando uma simples – mas nem por isso menos eficiente – mudança de foco uma vez que passa a produzir sons, preenchendo de propósito aquele que o toca e persistindo através do espaço como poucas sensações conseguem fazer.
Para além disso, é igualmente inteligente o plano iniciado em um rio poluído – outro espelhamento dos resultados proporcionados pela “sofisticação” das estruturas do homem – e através do qual a câmera “escala”, subindo para ir ao encontro do casal e mais uma vez colocá-lo como um paradoxo da humanidade. É algo próximo do que acontece, minutos mais tarde, durante uma caminhada entre Harry e o avô de Mare, que paralisa ao se deparar com a esposa com a qual brigou anos antes. Usando com genialidade das ferramentas oferecidas pela Sétima Arte, aqui De Jarnett – que escolheu filmar essa passagem através de uma steadycam, escolha que em muito complicou as gravações mas definitivamente não foi em vão – literalmente retrocede a sua câmera, retornando a campos espaciais já atravessados e passando a andar para trás, para representar como a não resolução de sequelas amorosas nos impedem de seguir em frente, forçando o retorno a pontos antigos e estáticos de nossa vida.
A construção calma dessas ligações contrasta muito bem com o ritmo das ações e de montagem que o longa adquire após a descoberta do conflito iminente, que incorpora um dinamismo mais exacerbado e reduz propositalmente algumas personagens. Caricatas, elas se veem impedidas de transparecer a sua verdadeira essência, separadas umas das outras em planos mais fechados, individuais, e sendo gradativamente desumanizadas pelo teor opressor que se encaminha até os minutos finais.
Não seria justo, todavia, afirmar que essas caricaturas não são funcionais, atuando – e principalmente no caso das cenas ambientadas em um posto de combustível e, mais tarde, em um shopping em destruição – na denúncia de certas leituras sociais que são influenciadas pela lógica comercial capitalista. É como se essas presenças só pudessem exercer funções mecânicas, retiradas de um perfil humano e vistas simplesmente como corpos, distorcidos conforme as disrupções que a busca incessante pelo lucro e efetividade são capazes de proporcionar.
Dessa forma, é por meio do choque entre a brutalização trazida por certos avanços da humanidade e a pureza de aspectos que por vezes parecem datados que o longa arquiteta uma agridoce ode ao poder do amor. Munido assim de uma história extremamente tocante, Steve De Jarnett subverte despropositadas competições como corridas armamentistas e disputas monetárias para argumentar que o verdadeiro responsável pela continuidade de nossa existência é o sentimento amoroso. Afinal de contas, o último parece ser um dos únicos conceitos realmente capazes de transcender através do tempo – que, conforme nos lembra o atraso de Harry para um de seus encontros, está muito além de nosso controle e compreensão -, destinado a originar incoerências evolutivas que cálculos científicos são incapazes de prever, assim como o arcaico vagão de bonde que trafega por entre os modernos edifícios da “Rua do Milagre”.