Exercitando as múltiplas esferas do terror como poucos o fizeram, James Wan declara todo o seu amor pelo gênero em um filme de linguagem e o mais autoral de toda a sua carreira.
Não é de agora que muitos longas tentam se afastar dos clichês do terror, impregnados pelo ímpeto de sofisticar um gênero mal visto por muitos. Mestre na emulação dos elementos mais clássicos desse setor, James Wan adota a contramão para mostrar que as raízes do mesmo estão mais vivas do que nunca.
Afetada por uma série de visões inquietantes, a perturbada Madison (Annabelle Wallis) passa a testemunhar os assassinatos cometidos por uma assustadora entidade. Recém saída de um relacionamento abusivo, ela decide tentar resolver o caso e se vê forçada a lutar contra demônios do seu passado. A uma descuidada primeira vista, o enredo pode até não parecer original, mas tem-se aí a trama que o diretor elege para homenagear o horror em seu mais autoral filme, “Maligno“.
Recuperando a câmera “vagante” que tanto marcou o seu “Invocação Do Mal“, Wan utiliza dos grandes trunfos de sua trajetória para artificializar ao máximo a experiência. Tudo aqui parece enfeitado e fantasioso, desde a atmosfera onírica que reveste o hospício da sequência de abertura até o zenital – planos vistos de cima – que compõe lindos quadros durante o primeiro delírio da protagonista.
Se os diálogos expositivos, as entradas de trilha melodramáticas e os litros de sangue falso fragilizam, aos olhos de alguns, a experiência, para outros é aqui que ela encontra o seu maior mérito: O auto reconhecimento como experiência cinematográfica, brincando com a relação que o espectador – eternamente dividido entre o racional e a descrença – estabelece com essas narrativas.
Nesse sentido, é brilhante como Wan compõe planos abertos e adulterados pela curvatura da lente – mostrando um afastamento entre a tela e as personagens, incapazes de vencer a dimensão fílmica – e reutiliza, de modo geral, traços que percorreu ao longo de toda a sua carreira. Se em um momento acompanhamos um terror psicológico – alavancando por belíssimos jogos de luz -, no instante seguinte seguimos um slasher digno dos “Giallos” italianos, isso para minutos mais tarde sermos surpreendidos com alucinantes passagens de ação policial. É o Cinema em sua mais pura forma, priorizando mais a linguagem do que os eventos retratados em si.
Não que a temática explorada pelo roteiro seja avulsa. Desacreditada durante uma longa fase de sua vida, Madison foi submetida a um tratamento psicológico por conta de um suposto amigo imaginário, Gabriel. Cruel, ele a levaria a cometer atos condenáveis, combatidos fortemente pelos conhecimentos científicos da doutora Florence Weaver (Jacqueline Mackenzie). Seria a sua existência uma realidade ou uma estratégia da personagem para ocultar a sua própria natureza?
Misturando magistralmente segmentos mais sugestivos e outros de puro horror físico – coroados com excelentes efeitos práticos e cenas de body horror – James retrata esse conflito entre fé e ciência justamente na mescla entre os diferentes subgêneros que o terror permite, explorando várias maneiras do público, seja o mais crente ou o mais “pé no chão”, se relacionar com aquilo em tela.
Desse modo, “Maligno” sintetiza e eleva ao máximo tudo que o terror é capaz de ser. Para além dos traumas e questões familiares que o enredo tenta abordar, o filme focaliza a nossa relação, metalinguística, com essas narrativas assombrosas, que por mais descartáveis que possam parecer para alguns, jamais deixarão de ser um fruto do nosso próprio imaginário. A obra é uma declaração de amor aos fãs e ao gênero, especializado na transposição de medos do imaginário coletivo para as grandes telas.
Uma representação de traços internos que, por mais sombrios que possam parecer, acabam convertidos em tela das mais criativas formas.