Corajoso e bem dirigido, o filme é um interessante conto urbano sobre a turbulenta dicotomia entre as aparências e a genuinidade dos laços humanos.
“Dias Melhores” faz parte da seleção do Festival do Rio 2021! Você pode assisti-lo gratuitamente na plataforma do Telecine apenas no dia 24/07 – acesse aqui.
Não são poucas as pressões que se amontoam perante o ser humano. Sejam instituições que determinam fórmulas para o sucesso profissional, marcas que regem as leis da beleza e da aparência, ou mesmo normas de interação social que minimizam certos comportamentos, nem sempre é fácil exercer a nossa verdadeira natureza. Em meio a essas constantes da manipulação de identidades, todavia, existe uma superior e inexplicável conexão, tão essencial à constante busca por pertencimento. Por vezes retratada em uma dimensão metafísica, é interessante perceber como essa ponte, o amor, ganha aqui nuances mais realistas, se harmonizando à atmosfera fúnebre e inquietante que molda o microcosmo do ótimo “Dias Melhores”, thriller lançado em Hong-Kong que finalmente chega ao Brasil graças ao Festival do Rio exibido pelo Telecine.
Perto de prestar o vestibular, a jovem Chen Nian (Dongyu Zhou) testemunha o súbito suicídio de uma amiga de classe. Estudante de uma exigente escola de elite, ela passa os dias mergulhada em estudos e pouco encontra tempo para cultivar amizades, herdando as angústias de sua mãe endividada e próxima dos sentimentos que levaram à escolha de sua ex-colega. Tudo se transforma, todavia, quando ela conhece o conturbado Xiao Bei (Jackson Yee), um jovem violento que decide protegê-la de estudantes que praticam bullying. Tem início assim uma relação complicada e bastante improvável, mas que em meio a interessantes questões éticas acaba sendo exemplarmente desenvolvida pelo diretor Derek Tsang.
Em primeiro lugar, chama atenção a eficiente criação estética da atmosfera que permeia a dupla principal, primordial na constituição do choque provocado pelo encontro dos dois. Reprimida por um grupo de meninas populares, as sequências iniciais muito bem determinam o deslocamento cotidianamente sentido por Chen Nian, que flerta constantemente com injustos lembretes de que aquele talvez não seja o seu lugar. Seja a constante alternância entre planos abertos e fechados nas salas de aula, forçando as suas tentativas de se harmonizar àquele ambiente, a violência praticada pelas garotas que tentam impor a sua artificial superioridade, ou simplesmente a fotografia cinzenta que a atordoa nos cenários externos, a sua solidão é palpável e gera forte identificação, ampliando as inseguranças de uma universitária para uma esfera universal.
Em contrapartida, é interessante perceber como Xiao Bei se apresenta como um completo oposto, moldado pelo meio que o permeia enquanto a protagonista resiste inicialmente, embora incapaz de externalizar os traços de sua verdadeira persona. Imerso em um universo agressivo e regado a brigas entre gangues e assassinatos, ele desconstrói as aparências que tanto regem a nossa convivência em sociedade, destituído de grandes bens materiais e privado de relações determinadas por superficialidades. Se externamente isso é apresentado por sua decadente residência – cuja reprodução desponta como um dos destaques da direção artística -, não é difícil perceber como sua índole é igualmente um contribuinte, especializando-o na destruição de laços por meio da violência, uma das mais primitivas formas de comunicação. Desse modo, chamam a atenção os enquadramentos mais distorcidos e dinâmicos – com direito a curvas e bastante uso de câmera na mão – escolhidos para retratar as passagens mais violentas e que retratam a personagem em questão, revelando a maior liberdade pessoal da mesma mas ao mesmo tempo a sua dificuldade de conexão, em contraste com momentos mais estáticos e contemplativos escolhidos para a sua protegida.
A partir dessa dicotomia, fica claro que a grande beleza da obra está no crescimento conjunto dessas duas figuras, sendo fascinante acompanhar a fusão das mesmas à medida em que suas concepções pessoais passam a se misturar. Retratados, em belíssimos planos, como sombras e reflexos uns dos outros, a dupla desenvolve assim, em meio a um monte dividido entre a penumbra da crueza humana e o intoxicante brilho de sua falsidade, um romance bastante genuíno, que embora não traga nenhuma grande novidade – pelo menos até a chegada de uma importante virada e do emocionante desfecho -, é eficiente em comover quem o acompanha através da maneira como a narrativa é retratada. Juntas, as personagens encontram assim uma extensão de si próprias umas nas outras, aceitas do jeito que são por bases amorosas que adquirem um valor muito maior que quaisquer convenções definidas por arcaísmos sociais.
Com tudo isso, é bastante encantadora a maneira como o longa consegue harmonizar seus traços mais românticos e violentos, tecendo um complexo drama sobre a constante jornada por pertencimento em meio à normalização de agressivas aparências sociais, rédeas por vezes capazes de induzir a ação humana a desesperadas medidas. É assim um excelente filme que prova que a excelência cinematográfica vai muito além de maniqueístas contos amorosos estadunidenses, jamais temendo a relativização de certos comportamentos que muitos diretores teriam pavor de sequer citar.