Série esquece de explorar dinâmica entre os protagonistas e apresenta subtramas que não tem interesse em continuar, mas consegue desenvolver o mais importante, o arco de Sam Wilson.
As primeiras séries da Marvel Studios parecem ter nascido da proposta de desenvolver personagens que nunca tiveram devido destaque nos filmes, mas que serão relevantes na próxima saga do Universo Cinematográfico da Marvel. “WandaVision”, além de trazer uma ótima alegoria sobre luto, tirou Wanda Maximoff do papel de coadjuvante e a consagrou como o ser mais poderoso do MCU. Já “Falcão e o Soldado Invernal” tinha como principal dever explorar o significado da passagem do manto do Capitão América na tocante cena vista em “Vingadores: Ultimato”. O que significa para Sam Wilson (Anthony Mackie), um homem afro-americano, levar à frente um símbolo que representa um país com um histórico racista?
Exibida semanalmente no Disney Plus, a série de seis episódios consegue propor esse questionamento e respondê-lo, tirando Sam da posição de sidekick e o promovendo ao protagonismo que lhe é de direito, enquanto aborda questões necessárias em um reflexo bastante preciso do mundo real. Nesta jornada, junta-se a ele Bucky Barnes (Sebastian Stan), o antigo Soldado Invernal, que tem de aprender a superar seu passado violento a fim de seguir em frente como um novo homem. Antes, os dois eram ligados somente por serem amigos de Steve Rogers (Chris Evans), mas sem ele, ambos são “apenas dois caras”, formando uma improvável dupla.
Embora seja uma progressão natural da história dos personagens, além de servir como oportunidade para discutir assuntos raramente abordados no MCU, a série teve como motivo inicial para sua criação a química entre Anthony Mackie e Sebastian Stan, que desde que foram colocados juntos nas turnês de divulgação a partir de 2014, com “Capitão América: O Soldado Invernal”, têm continuamente provado que a Marvel tinha quase a obrigação de explorar o potencial dos dois no estilo buddy cop. É confuso, então, que “Falcão e o Soldado Invernal” tenha insistido em deixar estes personagens separados na maior parte do tempo, quase como uma divergência até da própria forma que a obra foi divulgada antes de sua estreia. Na verdade, várias peças parecem não se encaixar na trama, e em sua metade a série evoca o questionamento: o que aconteceu?
A produção inicia com Sam desistindo de empunhar o escudo do Capitão América, cedendo-o ao museu onde, supostamente, permaneceria junto à mostra em homenagem a Steve Rogers, pois, em suas palavras, tal símbolo só era tão grandioso por conta do homem que o erguia. O antigo Vingador então retorna à casa de sua família e toma para si a responsabilidade de resolver problemas surgidos pós-blip, situação que parecia ser central para o escopo da série. Afinal, quando metade da população do universo desapareceu por conta do estalo de Thanos, o mundo teve de seguir em frente por cinco anos, só para depois ter todos de volta repentinamente. Seis meses depois, a felicidade do retorno foi substituída pelo caos global que tal situação causou.
O primeiro episódio mostra bem isso, com a dificuldade financeira enfrentada pela família de Sam e a apresentação dos Apátridas, grupo revolucionário que defende que o mundo era melhor durante o blip. O capítulo de estreia finaliza de forma ainda mais impactante ao mostrar a escolha de um novo Capitão América pelo governo, e identificamos a culpa e decepção de Sam ao ver aquele escudo que Steve havia lhe dado ser empunhado por um desconhecido. A separação entre Sam e Bucky é corrigida no segundo episódio, que os coloca juntos, e a química é instantânea. Os dois protagonistas se unem para investigar os Apátridas, e abre-se então uma nova trama, visto que os antagonistas não são revolucionários comuns, e sim supersoldados.
Ao se encaminhar para o terceiro episódio, a série comete erros dos quais não consegue se recuperar, apesar de chegar bem perto disso. A fim de descobrir sobre a origem do soro que tornou os Apátridas supersoldados, Sam e Bucky têm de recorrer à ajuda de Zemo (Daniel Brühl), o ardiloso vilão de “Capitão América: Guerra Civil” que esteve preso desde o fim deste filme. Na verdade, eles não “têm” de fazer isso, mas a trama tinha de achar um jeito de trazer o personagem de volta, então pela conveniência, Zemo retorna. Da mesma forma, Sharon Carter (Emily VanCamp), a ex-agente da SHIELD e da CIA, agora uma criminosa, surge na história sem propósito algum, e termina da mesma forma. No mesmo episódio, somos apresentados à cidade de Madripoor – que deve ter maior relevância no futuro, e não aqui -, conhecemos a figura onisciente do Mercador do Poder – também pouco relevante -, e a líder dos Apátridas, Karli Morgenthau (Erin Kellyman), muda repentinamente de postura para que os antagonistas pudessem ser taxados de terroristas, indo por água abaixo a discussão sobre o pós-blip.
Este episódio incha uma série já curta, jogando no ar muitas subtramas que claramente nunca teriam tempo de serem desenvolvidas. Se a ideia é abrir caminhos para futuras produções, que fizessem de uma forma a não comprometer tanto a história central de “Falcão e o Soldado Invernal”. Eles tentam se desviar dessas distrações nos episódios 4 e 5, e no geral são bem-sucedidos. Sendo os capítulos mais fortes da obra quanto ao que se propõem, somos apresentados ao verdadeiro John Walker (Wyatt Russell), o Capitão América apontado pelo governo, e vemos claramente o paralelo entre a série e a vida real, quando uma figura de autoridade abusa de seu poder e se sente justificado. A presença do soro do supersoldado se faz interessante na trama quando se discute o perigo da existência de tais “aprimorados”, e quando se questiona a ética relacionada a isso.
Um dos pontos mais fortes da produção é a introdução de Isaiah Bradley (Carl Lumbly), um soldado afro-americano que foi recrutado contra sua vontade e sofreu experimentos com o soro, em um capítulo apagado da História dos Estados Unidos. Ao descobrir isso, Sam questiona várias de suas crenças, chegando até a considerar que o escudo talvez devesse ser destruído. No MCU, o governo falhou com Sam por, de certa forma, rejeitá-lo como sucessor de Steve Rogers, e ainda mais por permitir algo tão terrível acontecer com Bradley e mais outros soldados afro-americanos. No nosso mundo, temos os experimentos de Tuskegee como acontecimento real, em que 600 homens negros foram usados de cobaia para o estudo da sífilis, e a maioria acabou morrendo.
Bradley coloca Sam frente a frente com a verdade sobre o país representado pelo Capitão América, um lugar em que a comunidade negra continuamente tem de lutar pelo direito de viver e de ter voz. Por que ele iria querer ser o símbolo disso? Bom, ao chegar em seu sexto episódio, a série responde. Sam nunca precisou do escudo para ser um herói, mas ao empunhá-lo ele representa algo além do próprio Steve, marcando um futuro promissor para o MCU.
É uma pena, no entanto, que em seu episódio final a produção também escancare suas principais fraquezas, trazendo pseudorresoluções para subtramas que nem deveriam ter feito parte da história. Já profissional em deixar pistas para capítulos vindouros em seus filmes, a Marvel ainda não encontrou a forma certa de fazer o mesmo em suas séries. “WandaVision” sofreu com essa necessidade, mas “Falcão e o Soldado Invernal” quase afundou por conta disso. É compreensível que um personagem como Zemo, por exemplo, seja valioso para o futuro, e portanto é necessário sua integração à trama. Mas é notável como a série parece ter sofrido mudanças de prioridade no meio do caminho.
A diretora Kari Skogland (“The Handmaid’s Tale”) faz um trabalho competente, mas a sala de roteiristas liderada por Malcolm Spellman (“Empire”) teve dificuldades em montar uma obra coesa. Muito se falou sobre como Sebastian Stan teve destaque em suas cenas mais dramáticas, mas a verdade é que o ator sempre soube trabalhar bem a profundidade emocional de seu personagem. Anthony Mackie, em sua abordagem mais sutil, entrega carisma de sobra e uma postura de verdadeiro líder. São as atuações de Wyatt Russell e Carl Lumbly que merecem mais elogios, por servirem tão bem a personagens que felizmente foram bem trabalhados.
“Falcão e o Soldado Invernal” decepciona, mas o saldo ainda é positivo pelo cuidado e o respeito com Sam Wilson, e também por mostrar que a fantasia deve ter a coragem de se espelhar mais vezes no mundo real. É verdade que na ficção, problemas são geralmente resolvidos com magia ou com discursos utópicos, mas isso às vezes se faz necessário quando a realidade é pesada demais para se lidar sem algo em que se inspirar. É válido ter esperança em um mundo melhor, e é ainda mais válido lutar por isso.