Apesar de conter pontos que poderiam ser melhor elaborados, a obra de 2019 consegue cativar pelo dinamismo da direção e seu protagonista marcante.
Ned Kelly foi um famoso fora-da-lei australiano de ascendência irlandesa, conhecido como uma figura controversa. Enquanto cometeu diversos crimes, o mesmo ganhou notoriedade e admiração de grande parte da população da Austrália nos seus anos ativo, por desafiar a lei e representar os imigrantes que eram comumente discriminados. E seu legado continua até hoje, com diversas obras cinematográficas dedicadas à sua figura. A mais recente delas, “A Verdadeira História de Ned Kelly”, foi baseada no livro best-seller “A História do Bando de Ned Kelly”, escrito por Peter Carey. Contado pelo ponto de vista do protagonista enquanto escreve uma carta para seu filho, acompanhamos sua vida da infância até a fase adulta, enquanto ele relembra os momentos que considera como os mais marcantes de sua trajetória.
Não é segredo que o gênero biográfico já está saturado há um bom tempo pela quantidade de obras que seguem o mesmo modelo e entregam resultados esquecíveis. Já o filme dirigido por Justin Kurzel (“Macbeth: Ambição e Guerra”) e roteirizado por Shaun Grant (“A Síndrome de Berlin”) consegue trazer elementos que tornam a história intrigante e até um pouco inovadora, a começar pela belíssima cinematografia de Ari Wegner, que chama atenção desde o início ao ressaltar e transmitir a desesperança presente no dia a dia do protagonista. A forma errática que algumas cenas são filmadas apresenta ao espectador o jeito caótico que a mente de Kelly funcionava. O filme retrata as cenas de grande tensão de forma envolvente, mas também sabe cativar na parte emocional, criando um vínculo entre o protagonista e a audiência, que visa mostrar a pessoa que ele realmente foi, apesar de todos os crimes que cometeu.
Mesmo seguindo algumas batidas mais conhecidas, o longa aprofunda o personagem de Ned Kelly com bastante precisão, principalmente durante a sua infância. A relação de Ned com a mãe – que precisava se virar de qualquer jeito para cuidar dos filhos – é bem explorada por um roteiro que dá valor aos pequenos momentos. Filho de um pai que pouco se importava com a família, as dinâmicas que são criadas entre Ned e os homens que passaram pela sua vida enquanto ele era jovem também são bem representadas e complexas; quando mais velho ele hesita em confiar nos personagens masculinos que povoam a trama, o que é construído como algo completamente compreensível. A ótima atuação contida do jovem Orlando Schwerdt abre o caminho para o Ned mais velho e cada vez mais desequilibrado de George MacKay. Essie Davis também está formidável como a matriarca dos Kelly.
Apesar de construir uma primeira metade bastante eficiente, muito do filme não é tão bem desenvolvido na sua segunda parte. A narrativa começa a perder sua imprevisibilidade no terceiro ato, exatamente quando a obra deveria entregar aquilo que prometeu: a união e o caos causado pela gangue.
O título da obra em português realmente faz mais sentido do que o original “True History of the Kelly Gang” (traduzido livremente para “A Verdadeira História da Gangue Kelly”), já que a história do bando não chega nem perto de ser tão explorada quanto a jornada individual de Ned. O longa decepciona nesse quesito ao entregar um bando de forasteiros que, pela falta de desenvolvimento dos demais personagens e de sua dinâmica como grupo, não deixa um impacto marcante. Muito se fala sobre os crimes que o grupo comete, mas pouco disso é mostrado, o que pode dificultar a audiência na hora de entender a gravidade e o impacto que aqueles homens tiveram na história. Nem mesmo o personagem mais explicitamente vilanesco de Nicholas Hoult, introduzido no segundo ato, causa grandes emoções: ele é inescrupuloso a ponto de apontar uma arma para a cabeça de uma criança para conseguir o que quer, e mesmo assim as cenas com ele em sua grande parte são superficiais e não chegam no nível de tensão que o filme parece querer trazer com a sua presença em tela.
No final do último ato, se é falado sobre como talvez seja moralmente errado que os australianos admirem tanto um criminoso. Porém, além da cena parecer extremamente desconexa no contexto da produção, em nenhum momento vemos a opinião pública sobre a gangue na obra, o que faz parecer que esses poucos minutos existem em tela apenas para que a audiência entenda um pouco sobre o impacto deles sem ter que de fato mostrá-lo. O que, obviamente, seria infinitamente mais interessante.
Ainda assim, “A Verdadeira História de Ned Kelly” consegue desenvolver uma história cheia de relacionamentos complexos e significativos enquanto retrata a vida de uma personalidade que até hoje é reconhecida pelo papel que desempenhou na história dos imigrantes irlandeses da Austrália dos anos 1800. Trazendo boas reviravoltas, a narrativa também tem algo interessante a dizer sobre como a desigualdade e o preconceito podem levar as pessoas ao extremo, e tudo isso de forma notável. Mesmo com seus pontos negativos, não deixa de ser uma boa obra que merece uma chance.