Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 02 de abril de 2021

Quo Vadis, Aida? (2020): quando não há para onde fugir

Indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro deste ano, uma história angustiante sobre os horrores de uma guerra civil que, por inação da ONU, resultou no massacre de milhares de muçulmanos bósnios pelo exército sérvio.

“Quo Vadis, Aida?” faz parte da seleção do Festival do Rio 2021! Você pode assisti-lo gratuitamente na plataforma do Telecine apenas no dia 22/07 – acesse aqui.

A primeira cena de “Quo Vadis, Aida?”, indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro deste ano, apresenta uma mesa de negociação entre militares holandesas das Forças de Paz da Organização das Nações Unidas (ONU)  e os políticos do vilarejo de Srebrenic, na Bósnia-Herzegovina. Na sala há apenas uma mulher, figura absolutamente central no encontro: Aida Selmanagic (Jasna Djuricic), tradutora da ONU na comunidade que tem a difícil missão de comunicar o apelo dos políticos locais por apoio bélico da ONU para enfrentar a iminente invasão do exército sérvio. A ajuda prometida pelo Coronel holandês não chega e a comunidade é invadida no dia seguinte. Alguns conseguem fugir para a floresta, muitos são assassinatos (como os políticos que estavam na reunião) e a maioria vai buscar refúgio na base da ONU próxima à cidade, entre eles o marido e os dois filhos de Aida. Testemunha da falta de recurso ou apoio externo para tamanha crise, a tradutora – ex-professora em Srebrenic – vê a ameaça crescente e tenta desesperadamente proteger sua família em meio ao caos.

Dirigido por Jasmila Žbanić, que já havia tratado do tema da guerra sérvia em outras obras, como “Em Segredo” (2006), o filme é um primor técnico e narrativo enquanto thriller dramático, mas, sobretudo, como uma recuperação histórica do último massacre ocorrido em solo europeu e reconhecido pelo Tribunal Internacional de Haia. O episódio ocorreu em 1995, causou mais de 3 mil mortes (a quem o filme é dedicado) e gerou posteriormente a punição dos líderes militares sérvios, bem como de muitos comandantes das Forças de Paz holandesas da ONU, escancarando a falta de estrutura e o peso burocrático da organização. Assim, torna-se uma grande denúncia histórica de um erro grotesco na proteção de milhares de muçulmanos em situação de guerra civil que foram entregues pela ONU à boa vontade (e más intenções) do exército sérvio liderado pelo general Ratjo Mladic (Boris Isakovic), condenado posteriormente à prisão perpétua.

A câmera acompanha Aida atentamente em sua jornada de idas e vindas entre sua função de tradutora numa situação de guerra e como mãe e esposa, única capaz de proteger sua família nesse contexto. Daí vem o Quo Vadis? do título, “Para onde vais?”, de origem bíblica e que no caso de Aida é: para lugar nenhum, pois não há qualquer lugar para onde ir. Enquanto se divide entre ser a voz de seu povo e líder de uma família de homens quebrados, traumatizados pela guerra, ela vai sendo exposta aos horrores da dominação iminente sem nenhuma alternativa de proteção. Aida, porém, nunca quebra, permanecendo resiliente (ou anestesiada?) do começo ao fim, eventualmente recorrendo a cigarros ou mesmo a um baseado para desopilar os ânimos.

A  protagonista é uma personagem inventada pelo roteiro de Jasmila, porém a interpretação de Jasna lhe dá vida de uma maneira fabulosa e nos deixa vidrados em acompanhar sua luta por sobrevivência. Em meio a milhares de figurantes, os coadjuvantes mais relevantes à história, além de sua frágil família, são os militares do campo da ONU. Alguns, muito jovens, não tinham preparo para encarar a gravidade da situação e cedem até ao bully dos pelotões sérvios, que adentram no campo sem muita dificuldade. Outros, velhos burocratas da ONU, não tinham visão estratégia ou atenção da organização para solicitar maiores reforços armados, deixando assim os refugiados na mão do exército dos inimigos.

A consistente direção de Jasmila e seu roteiro poderoso e angustiante deu destaque ao longa na temporada de premiações. Tanto a diretora quanto o filme receberam indicações ao prêmio BAFTA. A obra venceu o prêmio do Júri no Festival de Rotterdam na Holanda, e neste ano, é uma das quatro produções indicadas ao Oscar dirigidas por mulheres, junto a “Bela Vingança“, de Emerald Fennell; “Nomadland“, de Chloe Zhao e “O Homem que Vendeu sua Pele“, representante da Tunísia dirigido por Kaouther Ben Hania. Ainda que mais lentamente do que desejaríamos, vemos, assim, a Academia sendo mais inclusiva nas suas indicações (ainda que Regina King tenha ficado de fora pelo trabalho magnífico em “Uma Noite em Miami“), abrindo espaço para um cinema em que não seja uma raridade ver uma mulher dirigindo um filme de guerra, tal como Kathryn Bigelow fora pioneira em 2008 com “Guerra ao Terror” e Jasmila realiza agora com essa magnífica obra de luto e luta.

Vinícius Volcof
@volcof

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