Com personagens profundos e uma atmosfera conduzida por um excelente ritmo, a segunda temporada torna mais claro o seu exercício de denunciar as duras consequências que o acreditar cegamente pode proporcionar.
Reconhecido pela criação de inventivas histórias originais, o diretor M. Night Shyamalan se aventurou desde cedo pelo suspense, entregando tramas extremamente intrigantes e permeadas por reviravoltas. Ligado desde jovem a temáticas religiosas – assunto que abordou em seu pouco conhecido longo de estreia “Praying with Anger“, que resgata traços da crença indiana que herdou de seus antepassados -, o cineasta sempre buscou inserir a fé em seus mais diversos projetos, nunca hesitando em induzir interessantes reflexões sobre questões metafísicas do mundo. Lançada em 2019 pela Apple TV+, “Servant” serviu assim como um excelente exercício para o indiano abordar os efeitos que a religião pode exercer sobre o homem, produção que encerra agora a sua melhorada segunda temporada.
Criada pelo roteirista Tony Basgallop, a série retoma o seu intrigante enredo do exato ponto em que a plateia havia sido deixada, dando continuidade ao repentino desaparecimento do bebê Jericho e de sua misteriosa babá, Leanne Grayson (Nell Tiger Free). Temendo pela vida do recém-nascido, Dorothy (Lauren Ambrose) e Sean Turner (Toby Kebbell) iniciam uma árdua investigação, utilizando as habilidades da primeira como repórter e a ajuda de figuras como o amargurado Julian (Rupert Grint). À medida que as buscas se aprofundam, tudo se complica e traumatizantes vestígios do passado passam a corromper todos.
Ambientada em praticamente um único ambiente e apresentando poucas personagens, é interessante notar como, além de se encaixar perfeitamente dentro das restrições impostas pelo triste contexto atual, o seriado se sustenta em um formato extremamente simples, sabendo utilizar sabiamente as suas limitações e evitando os marasmos ou a monotonia. Ao se passar em um verdadeiro microcosmo dentro do qual seus protagonistas interagem, essa é uma ótima plataforma para notáveis desenvolvimentos psicológicos de todos eles. É necessário ressaltar também uma considerável evolução no ritmo do projeto, que se anteriormente sofreu com capítulos vazios e pouco essenciais, aqui apresenta seus acontecimentos dinamicamente bem distribuídos ao longo da narrativa.
Sustentada principalmente pela psique do casal Turner e pelas perturbadoras tradições da família Grayson, é imensamente gratificante acompanhar a evolução que o trio principal possui na nova leva de episódios, cada qual sendo forçado a lidar com uma porção única de demônios internos e pendências acumuladas sobre suas costas. Assombrados por fantasmas de suas decisões, Leanne, Sean e Dorothy convergem na criação de autoimagens idealizadas, inseridas em jornadas pessoais enquanto adotam questionáveis decisões que são capazes de justificar ao projetá-las para o papel que assumem na relação com o outro. Se em Dorothy começa a florescer um espírito destruidor – postura que recai sobre Leanne e muito bem harmonizada à dramaticidade de Lauren Ambrose -, é em Jericho que a mãe desesperada encontra a justificativa para as suas ações, cerrando os olhos para alguns de seus pecados por se convencer do caráter inabalável que deve assumir para proteger sua cria.
Paralelamente a essa transformação, Sean se afunda ainda mais na fantasiosa realidade que insistiu em preservar desde o primeiro episódio, dividido entre o amor que sente por sua esposa e pela urgente necessidade interior de forçá-la a encarar uma dura verdade. Consumido por essa divisão, ele adota uma postura mais amigável em relação à antiga cuidadora de seu filho, tentando compensar sua decisão e atingir maiores resultados na procura pelo bebê através da carapuça digna de um bom homem – perfil muito bem entregue pelo carismático Toby Kebbell. Conforme tais comportamentos começam a gerar recompensas – a recuperação da capacidade de sentir gostos, essencial para a sua profissão como chef de cozinha, literalmente encarregado de manipular matérias para produzir sensações agradáveis – é interessante observar como a fé nas boas ações que pratica cresce como um norteador em sua vida, afastando-o gradativamente de uma Dorothy em gradativo declínio moral.
Seria injusto não destacar as surpreendentes mudanças que a crente Leanne atravessa – desenvolvido pelo amplo alcance de Nell Tiger Free -, se afastando bastante do arquétipo da jovem retraída por correntes religiosas que foi construído na primeira temporada. Enquanto ela enfrenta constantes choques proporcionados pelos Turner, começa a analisar os custos que as opressivas tradições de sua família significaram em sua vida, questionando o verdadeiro valor de sua fé exacerbada. Rejeitada pela mãe quando criança, ela não só se distancia dos tios que acompanharam o seu crescimento – presenças que nunca a permitiram definir o “bom” e o “mal” com as suas próprias palavras -, como também começa a se dar conta da grandiosa relatividade que as religiões assumem na significação da existência, passando a enxergá-las como meras fantasias criadas pelo imaginário coletivo e com especificidades projetadas por cada contexto particular.
Decepcionada com os anos de profunda dedicação e martírio em nome de “Deus”, caminhos que a tornariam uma pessoa importante e especial, ela se permite certas liberdades e remodela diversas concepções em relação àqueles ao seu redor. Sendo assim, essas três figuras centrais, projetando suas angústias e necessidades umas nas outras, servem à relativização de ações comumente adotadas e da artificialidade que essas tecem, por vezes capazes de nos manipular ao depositarmos demasiada fé nesses simulacros. Mais do que isso, o fundamental é perceber como elas ainda se unificam pelos sentimentos interiores que os consomem de dentro para a fora, representando por meio de relações trágicas como muitas vezes as ramificações da crença religiosa são capazes de fraturar a humanidade, quando na realidade deveriam atuar na cura conjunta de sentimentos universais.
Embora o roteiro de Basgallop dê especial atenção a essa tríade, é igualmente louvável o tratamento concedido a Julian, antes resumido a um tio bêbado e amargurado, agora recebe novas camadas. Embora essa compensação só apareça realmente nos episódios finais do segundo ano, o desenvolvimento é capaz de construir – ao lado de um dedicado Rupert Grint, bastante deslocado do enérgico Rony que viveu na franquia “Harry Potter” -, a capacidade humana de entregar seu bem-estar à bebida e substâncias químicas (num paralelo com a dependência que muitos possuem em relação à explicações espirituais), se aprofundando na mente de um viciado que também afunda em sua própria parcela de remorso.
É louvável também a iniciativa que a produção apresenta em seu esquema de direção, dividindo o cargo entre diferentes diretores e dando especial atenção à figura feminina nesse papel. Dessa forma, chamam a atenção nomes como Ishana Shyamalan – filha do próprio M. Night e responsável, entre outros capítulos, pelo envolvente Pizza, passagem que explora muito bem as deturpadas compensações que Dorothy tenta para arrumar antigas cicatrizes -, Julia Ducournau – diretora do inesquecível “Raw” e à frente do episódio de retorno, recebendo o público com uma eletrizante atmosfera dentro da claustrofóbica casa em que os acontecimentos se desenrolam – e Isabella Eklöf – igualmente eficiente na manutenção da tensão constante e encarregada do belíssimo Loveshack, conto sobre as proximidades entre o amor espiritual e os prazeres carnais, dois possíveis combustíveis para a vida. Por conta disso, é digno de elogios como esse “rodízio” é capaz de garantir uma unidade estilística e reforçar de modo metalinguístico como mesmo através de distinções a humanidade consegue ser universal.
Com tudo isso, é possível perceber como Shyamalan – mesmo sua presença sendo também verificada em alguns excessos e conveniências típicas de seu estilo – encontrou na criação de Basgallop uma excelente maneira de dar continuidade aos seus criativos discursos sobre fé , construindo um enervante mergulho na narrativa de uma família assolada pelas manipulações que as diferentes esferas do acreditar podem assumir. Mesclando o sobrenatural ao racionalismo dos céticos, o projeto consegue assim demonstrar as diferentes fantasias que somos capazes de arquitetar em nossas mentes, poderosas o suficiente para moldar imagens e cenários específicos da forma que nos for mais confortável: seja uma mãe conturbada que quer se enxergar como uma grande lutadora, seja uma jovem medrosa sedenta pela sensação de poder e propósito. A série ainda mostra que a verdadeira solução está na unificação dos laços humanos, mais fortes que qualquer superficialidade que podemos nos fazer crer.
Com ótimas atuações, um ritmo evoluído e um excelente aprofundamento psicológico de suas personagens, a segunda temporada de “Servant” se mostra um imperdível exercício do gênero do terror e da sua relação com a necessidade de se significar a vida. Através de filosofias furadas, perfis fraturados e complexos confrontos entre a moralidade e a satisfação humana, a série torna mais clara a sua proposta de desmistificar o papel da fé como um norteador em momentos de dificuldade, alertando para a capacidade do homem de adotar cegamente certas imagens que podem nem sempre parecer o que de fato são. Assim, a produção é inteligente e dialoga tematicamente com o momento em que estamos vivendo, mostrando que mais do que nutrir falsas esperanças em vale mais a fortificação de relacionamentos próximos.