Um roteiro original e bastante promissor, mas que se perde, talvez, por medo de arriscar, caindo no pieguismo.
“Bela Vingança” faz parte da seleção do Festival do Rio 2021! Você pode assisti-lo gratuitamente na plataforma do Telecine apenas no dia 25/07 – acesse aqui.
Desde 2017, o cenário audiovisual do Ocidente passa por um fenômeno interessante, com a efervescência de obras pautadas no viés feminino. A conquista desse espaço se deu em decorrência do movimento #MeToo, no qual diversas denúncias de abuso e assédio sexual eclodiram, envolvendo figuras de renome no meio hollywoodiano. A partir disso, muito se tem discutido no tocante às narrativas escritas por e para mulheres, e de que modo esse cinema pode corroborar ou arrefecer violências de gênero. “Bela Vingança” aparece incitando essa discussão já na primeira sequência do longa, de modo que um grupo de rapazes discorre as condutas – dignas ou não, segundo sua perspectiva – de uma jovem observada na festa em questão.
Na protagonista Carrie, a personagem analisada pelas figuras masculinas na cena inicial, observa-se a transmutação de Carey Mulligan, que desde os primeiros trejeitos ébrios encenados justifica a atenção dedicada do espectador. É divertidíssimo assistir a atriz brincando com olhares e com meios sorrisos para transitar entre as versões de sua protagonista – seja seu eu doce e romântico, seja seu alter ego femme fatale. Mas ainda que ela entregue uma atuação efetivamente memorável, seu potencial é transparentemente subaproveitado e desperdiçado em um roteiro medíocre.
O enredo descreve a trajetória de uma moça que, atormentada por traumas à época de sua faculdade, abdica de seus planos para assumir uma postura de justiceira mediante os homens os quais perpassam seu caminho. Carrie encontra seu novo propósito: vingar-se dos responsáveis por sua memória maculada. Assim, a trama é conduzida por esse desejo de vingança, e aos poucos suas motivações são explicadas. Contudo, à medida que a narrativa avança e conduz o público ao seu discurso – a princípio, tão escancarado e forte -, ela se esvazia. Emerald Fennell, em sua estreia como cineasta e assinando, também, o roteiro da obra, é possivelmente vítima de uma interessante ironia: sentir a necessidade de silenciar ao escrever uma história sobre uma mulher que não quer ser silenciada.
Às mulheres é frequentemente recomendado o papel de dócil, aprazível. É essencial saber portar-se, não beber demais e atenuar o timbre. Porque mulher tem que se dar ao respeito. Se for esdrúxula ou assertiva demais, vai irritar. Tomando tudo isso como receita, ao mesmo tempo em que parece querer denunciar esses estigmas, é que Fennell baseia sua escrita. Vai, portanto, pincelando violência sem jamais ser gráfica, apontando problemas reais e apresentando soluções débeis, falando mais alto pra depois pedir desculpas. O ponto mais expressivo desse silenciamento se dá no fim do terceiro ato, com uma promessa de subversão que não se concretiza e enovela mais ainda qualquer potencial mensagem que quisesse ser passada – podendo frustrar muitos espectadores no final do filme.
Com isso, mesmo tratando-se de uma sátira, com uso frequente de um humor mais ácido, em vários momentos a crítica é passada com tanta leveza que, quiçá, passa despercebida. Durante um período significativo, inclusive, o escopo narrativo fica tão perdido que a obra parece abraçar o papel de feel good movie tão ostensivamente quanto romances como “Para Todos os Garotos que Já Amei”, em que é tudo muito bonitinho e só. E, em se tratando de um filme que, mesmo timidamente, lança luz sobre e propõe-se a discutir variados graus de assédio, quaisquer romantizações são dramaticamente coniventes com essas problemáticas cotidianas.
Portanto, “Bela Vingança” foge um pouco à catarse (ou à austeridade desconfortante presente em “I May Destroy You”, cuja temática converge) talvez esperada por muitos, mas não deixa de ser interessante. A montagem do longa proporciona uma experiência audiovisual bem dinâmica, inclusive o dividindo em partes que incitam a expectativa do público pelo desenrolar da trama e prendem bem a atenção. A direção de Fennel opta por um caminho curioso, e os demais aspectos, incluindo cenografia e trilha sonora, ganham um status jovem e moderninho. Sob essa perspectiva, com certeza não é um filme monótono ou comum, e ainda consegue, sim, levantar reflexões e divertir.
Lamentável, porém, que das poucas mulheres que se destacam (pelo menos midiaticamente) no meio audiovisual, ainda fique tão evidente esse desejo de muitas em caber no modesto espaço que lhes foi cedido. Mas na esperança de outras Emerald, não apenas promissoras, mas que subvertam, gritem, rasguem e conquistem seus lugares definitivamente é que se aplaudem primeiros passos satisfatórios como esse dado em 2020.