A história foi criada pelo casal best-seller Raphael Draccon e Carolina Munhóz. A série nacional faz uma releitura do folclore tupiniquim com toque de terror e suspense.
Nosso folclore é cheio de criaturas fantásticas, cada uma com uma lenda ainda mais fantástica. O Boto cor-de-rosa que vira homem mulherengo. Iara, a sereia que seduz os pescadores com seu canto e os enterra nas profundezas do oceano. O Saci, um menino que adora travessuras e se move num redemoinho e tantos outros como o Curupira, a Mula Sem Cabeça e a Cuca. Patrimônio nacional, essas figuras sempre fizeram parte do imaginário da criançada, com suas histórias divertidas para dormir e que ganharam ainda mais graça e inocência devido às suas aparições no Sítio do Pica-Pau Amarelo. Quem não se lembra da Cuca em forma de jacaré loira? Só que a proposta de “Cidade Invisível” é justamente subverter aquilo que a maioria do público aprendeu sobre o folclore. Com uma abordagem mais adulta, que mistura suspense e fantasia, e um qualidade visual acima da média, a série entretém ao mesmo tempo que serve de ferramenta para resgatar parte da nossa cultura que às vezes se encontra marginalizada.
Com história criada pelos autores best-sellers Raphael Draccon e Carolina Munhóz, a série foi desenvolvida pelo premiado realizador Carlos Saldanha (que curiosamente não dirige nenhum episódio). A trama acompanha a história de Eric (Marco Pigossi), um policial da Delegacia de Proteção Ambiental que se envolve numa teia de investigação perigosa e reveladora após a morte da esposa Gabriela (Julia Konrad) durante um incêndio na Floresta do Cedro, no fictício vilarejo de Vila Toré. Ao passo que vai tentando solucionar o mistério, Eric descobre uma série de entidades do folclore nacional que circulam por ali já há algum tempo, mas que se mantiveram escondidas no subúrbio do Rio de Janeiro (cidade maravilhosa, mas também conhecida pela extrema desigualdade). O contato com essas figuras no meio da investigação acaba por despertar algumas questões sobre o passado dele e de seus familiares, além de colocá-lo numa briga entre o mundo real e o místico. Inteligente e criativa, a ideia (criada por Draccon e Munhóz) levada por Saldanha à Netflix mostra potencial para conquistar brasileiros e estrangeiros ainda que a condução seja um pouco irregular.
O emaranhado que surge com a busca de Eric pelo responsável pela morte de Gabriela, segue com uma investigação carregada de clichês, os quais o espectador nem precisa ir longe para lembrar, vide a recente “Bom dia, Verônica“, produção que também trazia uma policial destemida como fio condutor da narrativa. Por isso, a trama do policial que se vê cercado de conflitos pessoais e profissionais é uma dinâmica manjada, assim como a velha relutância do protagonista em aceitar seu destino. Essa parte da narrativa que se dedica à caça por pistas e que se preocupa em desvendar o mistério é, por vezes, sonolenta. Com isso o suspense que deseja imprimir é levemente prejudicado e o impacto das revelações minimizado. Porém, esse marasmo do núcleo policial é um dos poucos problemas, fácil de esquecer quando a fantasia entra em cena e as entidades, em formas contemporâneas, começam a se apresentar. É quando o roteiro foca nos dramas e mistérios que permeiam Iara, Saci, Cuca e os outros seres que a série ganha relevância e tem seus melhores momentos.
As origens das entidades são rapidamente apresentadas no início de alguns episódios, o que pode desagradar aos que esperam por um estudo mais profundo sobre cada um. No entanto, o pouco que é revelado ao público demonstra ser suficiente para entender as motivações das entidades. Além disso, o que confere peso e encanto às jornadas são as atuações. Destaque para Alessandra Negrini dando vida a uma Cuca charmosa e poderosa, que sabe esconder o perigo atrás de uma notável calmaria. Jessica Corés e Wesley Guimarães, respectivamente Camila/Iara e Isac/Saci, encarnam suas lendas com as particularidades pelas quais são reconhecidas. Ela sedutora e com olhar enigmático, enquanto ele carismático e travesso deixa sua marca sempre quando aparece – e é uma pena que o roteiro suma com ele por alguns episódios. Outro que vai crescendo até o clímax é o Curupira. Interpretado pelo talentoso Fábio Lago, o homem com os pés virados e a cabeça em chamas se apresenta como um mendigo de mal humor divertido graças ao ator.
Entre o real e o fantasioso, encontra-se Marco Pigossi e a certeza de que o protagonismo está em boas mãos. O ator consegue ir além da caricatura do policial bonzinho que o roteiro impõe, e assim como a própria série, vai bem quando se mistura com o núcleo fantasioso. Com uma direção que se alterna entre Luis Carone e Julia Jordão, a primeira temporada de “Cidade Invisível” é mais uma prova da qualidade e inventividade das produções nacionais, que ainda situa sua história em locações importantes para discutir outros assuntos. A floresta, alvo de uma ambiciosa construtora, traz para o debate a preservação ambiental e o subúrbio do Rio de Janeiro, onde moram Inês, Isac, Camila e Iberê, é a metáfora perfeita para ilustrar a marginalização daqueles que grande parte da sociedade julga diferente. Tecnicamente, a série revela sequências empolgantes, com efeitos especiais Hollywoodianos e uma porção de transições belíssimas, por exemplo, quando a borboleta se transforma em Cuca e outras ainda mais elegantes, quando Eric, em processo de revelação, mergulha num poço e surge numa praia, numa pegada mundo invertido de “Stranger Things“.
Instigante, criativa, divertida, às vezes irregular, mas bem contada e atuada, “Cidade Invisível” é uma conquista técnica, visual e argumentativa que revisita o folclore com olhos mais maduros, garante a manutenção da nossa cultura e, por que não, também do nosso meio ambiente.