Em sua estreia em longas, Rose Glass entrega uma personagem deliciosamente complexa e uma estética enervante de terror discutindo o que leva alguém à autodestruição.
Quando o objetivo de um filme é retratar a mente de alguém quebrado psicologicamente, nenhum outro gênero é mais eficaz que o terror. Suas ferramentas estéticas, como montagem, fotografia e design de som característicos, podem reconstruir a realidade na perspectiva de um protagonista que não possui a mesma visão de mundo de outros indivíduos. É exatamente o que a diretora Rose Glass realizou para contar a história de Maud, ou “Saint Maud“.
A enfermeira Maud (Morfydd Clark) inicia um trabalho particular para cuidar de uma ex-dançarina profissional, Amanda (Jennifer Ehle), que sofre de câncer terminal. No entanto, para ela não é um simples emprego, é um chamado religioso. Maud vive sozinha em um pequeno espaço no norte da Inglaterra e tudo o que sabemos sobre ela é por sua própria voz e pensamentos. Ou quase tudo, pois o que há de mais brilhante na narrativa é a sutileza de Glass em posicionar o público sobre o que é real, mesmo sob o ponto de vista duvidoso da protagonista.
Um trauma profissional passado e suas dores, físicas e mentais, levam a jovem a buscar explicações religiosas para sua situação. Suas “conversas” com Deus buscam reafirmação. Afinal, sua vida importa e ela é especial. E sendo assim, nada mais compreensível que alguém disposta a distorcer a realidade para adaptar o mundo ao seu modo de pensar, quando ela própria não consegue se conectar com este mundo.
Esta representação de debilidade mental, e consequente solidão e incapacidade de se relacionar, foi discutida de maneira semelhante por Todd Phillips, mas pelas regras de outro gênero com seu “Coringa“. Tanto Arthur Fleck de Phillips e Maud de Glass são protagonistas-narradores não confiáveis, pois suas percepções de realidade são fatalmente lapidadas por seu psicológico danificado. Como a cidade de Gothan é construída pelos olhos de Arthur, cabe à empatia do espectador tentar enxergar o que há por trás do vilão em construção. Já o terror criado pela diretora planta muito mais dicas e não deixa espaço para ambiguidades ao compreender o universo de Maud.
Para começar, a fotografia quente e sombria está no limiar entre a reclusão aconchegante e o vermelho satânico no espectro de cores. As luzes baixas são comuns nos espaços frequentados por Maud e, ao lado do horror corporal comedido e de sons reconstruídos para formar um clima desconcertante ao filme, são algumas das características que posicionam a obra como terror apesar de não trabalhar o medo no espectador. Por essa escuridão, tratamento sonoro, roteiro enxuto, arte bem pensada como componente narrativo, importantes deixas de atuação e planos montados como flashes rápidos, o longa seria melhor visto em ambientes apropriados como salas de cinema, sem as distrações domiciliares comuns. A riqueza cinematográfica desta obra pede para ser apreciada da melhor maneira possível.
A religião como alegoria central pode ser percebida como crítica à sua função ao indivíduo, como uma maneira a dar propósito e significar uma vida ao mesmo tempo que é livre para reinterpretações pessoais. Tal ponto encontra rima nos pensamentos do artista e pensador William Blake, que tinha sua própria posição frente ao cristianismo e é referenciado num livro presenteado por Amanda à Maud. Além disso, há detalhes visuais também na relação contraditória da protagonista com as representações de Jesus crucificado e de mulheres santificadas. O sexo e a luxúria são tanto meios como barreiras para a enfermeira, uma vez que sua necessidade de socializar ou reafirmar suas crenças atravessa tais temas. No entanto, o interesse principal da produção é estudar e reinterpretar a psique indiscutivelmente doente de sua protagonista. Dessa forma, importa mais a discussão sobre possíveis questões sociais envolvidas em seu estado mental do que sobre religião, que apenas atua como prisma para sua visão de mundo.
“A Bruxa” de Robert Eggers também foi construído com muitos elementos em comum, especialmente a direção tomada pelo destino de suas protagonistas femininas. Além da religiosidade como atributo fundamental no conflito interno, há a superposição do prazer corporal como fenômeno de comunicação divina e similitudes na representação da entidade sobrenatural. Porém, enquanto Eggers abraçou totalmente a ambiguidade na perspectiva do seu público, Rose realiza algo até mais ousado. A diretora coloca os espectadores na pele de Maud, vivenciando suas experiências da maneira que sua personagem as sente, mas elegantemente contrapondo a realidade e assim removendo qualquer dúvida que algo sobrenatural possa estar ocorrendo. De certa forma, a narrativa exemplifica como alguém pode perder o controle da própria vida ao ressignificar constantemente o mundo e não enxergar que parte do problema está em si mesmo.
Enquanto as circunstâncias de “A Bruxa” e “Coringa” praticamente encurralam seus protagonistas removendo esperanças ao longo de suas jornadas de transformação, “Saint Maud” se posiciona um pouco à frente neste destino comum rumo à desconexão. As dores de Maud são tão fortes que é mais fácil para ela transformar sua realidade que aceitar sua situação. Thomasin de “A Bruxa“, Arthur Fleck e a mulher por trás de Maud são exemplos de como o contexto social pode ajudar a empurrar um indivíduo em direção à autodestruição. Porém, Rose Glass oferece uma lição a mais em seu estudo de personagem: o que diferencia vilões de mocinhos não está exatamente nas consequências de seus atos, mas na maneira que eles veem seus próprios mundos. E dependendo do ângulo o caminho do sublime é o mesmo da ruína.