Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Saint Maud (2019): uma aula de estética, domínio narrativo e autodestruição

Em sua estreia em longas, Rose Glass entrega uma personagem deliciosamente complexa e uma estética enervante de terror discutindo o que leva alguém à autodestruição.

Quando o objetivo de um filme é retratar a mente de alguém quebrado psicologicamente, nenhum outro gênero é mais eficaz que o terror. Suas ferramentas estéticas, como montagem, fotografia e design de som característicos, podem reconstruir a realidade na perspectiva de um protagonista que não possui a mesma visão de mundo de outros indivíduos. É exatamente o que a diretora Rose Glass realizou para contar a história de Maud, ou “Saint Maud“.

A enfermeira Maud (Morfydd Clark) inicia um trabalho particular para cuidar de uma ex-dançarina profissional, Amanda (Jennifer Ehle), que sofre de câncer terminal. No entanto, para ela não é um simples emprego, é um chamado religioso. Maud vive sozinha em um pequeno espaço no norte da Inglaterra e tudo o que sabemos sobre ela é por sua própria voz e pensamentos. Ou quase tudo, pois o que há de mais brilhante na narrativa é a sutileza de Glass em posicionar o público sobre o que é real, mesmo sob o ponto de vista duvidoso da protagonista.

Um trauma profissional passado e suas dores, físicas e mentais, levam a jovem a buscar explicações religiosas para sua situação. Suas “conversas” com Deus buscam reafirmação. Afinal, sua vida importa e ela é especial. E sendo assim, nada mais compreensível que alguém disposta a distorcer a realidade para adaptar o mundo ao seu modo de pensar, quando ela própria não consegue se conectar com este mundo.

Esta representação de debilidade mental, e consequente solidão e incapacidade de se relacionar, foi discutida de maneira semelhante por Todd Phillips, mas pelas regras de outro gênero com seu “Coringa“. Tanto Arthur Fleck de Phillips e Maud de Glass são protagonistas-narradores não confiáveis, pois suas percepções de realidade são fatalmente lapidadas por seu psicológico danificado. Como a cidade de Gothan é construída pelos olhos de Arthur, cabe à empatia do espectador tentar enxergar o que há por trás do vilão em construção. Já o terror criado pela diretora planta muito mais dicas e não deixa espaço para ambiguidades ao compreender o universo de Maud.

Para começar, a fotografia quente e sombria está no limiar entre a reclusão aconchegante e o vermelho satânico no espectro de cores. As luzes baixas são comuns nos espaços frequentados por Maud e, ao lado do horror corporal comedido e de sons reconstruídos para formar um clima desconcertante ao filme, são algumas das características que posicionam  a obra como terror apesar de não trabalhar o medo no espectador. Por essa escuridão, tratamento sonoro, roteiro enxuto, arte bem pensada como componente narrativo, importantes deixas de atuação e planos montados como flashes rápidos, o longa seria melhor visto em ambientes apropriados como salas de cinema, sem as distrações domiciliares comuns. A riqueza cinematográfica desta obra pede para ser apreciada da melhor maneira possível.

A religião como alegoria central pode ser percebida como crítica à sua função ao indivíduo, como uma maneira a dar propósito e significar uma vida ao mesmo tempo que é livre para reinterpretações pessoais. Tal ponto encontra rima nos pensamentos do artista e pensador William Blake, que tinha sua própria posição frente ao cristianismo e é referenciado num livro presenteado por Amanda à Maud. Além disso, há detalhes visuais também na relação contraditória da protagonista com as representações de Jesus crucificado e de mulheres santificadas. O sexo e a luxúria são tanto meios como barreiras para a enfermeira, uma vez que sua necessidade de socializar ou reafirmar suas crenças atravessa tais temas. No entanto, o interesse principal da produção é estudar e reinterpretar a psique indiscutivelmente doente de sua protagonista. Dessa forma, importa mais a discussão sobre possíveis questões sociais envolvidas em seu estado mental do que sobre religião, que apenas atua como prisma para sua visão de mundo.

A Bruxa” de Robert Eggers também foi construído com muitos elementos em comum, especialmente a direção tomada pelo destino de suas protagonistas femininas. Além da religiosidade como atributo fundamental no conflito interno, há a superposição do prazer corporal como fenômeno de comunicação divina e similitudes na representação da entidade sobrenatural. Porém, enquanto Eggers abraçou totalmente a ambiguidade na perspectiva do seu público, Rose realiza algo até mais ousado. A diretora coloca os espectadores na pele de Maud, vivenciando suas experiências da maneira que sua personagem as sente, mas elegantemente contrapondo a realidade e assim removendo qualquer dúvida que algo sobrenatural possa estar ocorrendo. De certa forma, a narrativa exemplifica como alguém pode perder o controle da própria vida ao ressignificar constantemente o mundo e não enxergar que parte do problema está em si mesmo.

Enquanto as circunstâncias de “A Bruxa” e “Coringa” praticamente encurralam seus protagonistas removendo esperanças ao longo de suas jornadas de transformação, “Saint Maud” se posiciona um pouco à frente neste destino comum rumo à desconexão. As dores de Maud são tão fortes que é mais fácil para ela transformar sua realidade que aceitar sua situação. Thomasin de “A Bruxa“, Arthur Fleck e a mulher por trás de Maud são exemplos de como o contexto social pode ajudar a empurrar um indivíduo em direção à autodestruição. Porém, Rose Glass oferece uma lição a mais em seu estudo de personagem: o que diferencia vilões de mocinhos não está exatamente nas consequências de seus atos, mas na maneira que eles veem seus próprios mundos. E dependendo do ângulo o caminho do sublime é o mesmo da ruína.

William Sousa
@williamsousa

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