Extremamente atual para o início da década de 2020, a segunda temporada pega preconceituosos por sua própria hipocrisia e entrega uma ácida crítica à cultura de fake news, desrespeito e intolerância.
Baseada nos quadrinhos homônimos publicados no Brasil pela Devir, escritos por Garth Ennis e ilustrados por Darick Robertson, “The Boys” encerra sua segunda temporada com louvor na Amazon Prime Video. A série desenvolvida por Eric Kripke (responsável pela longeva e bem-sucedida “Supernatural”) traz um mundo onde os super-heróis fazem parte da rotina e da cultura da sociedade moderna. Porém, logo se percebe que chamá-los de “heróis” é inadequado, visto que seus objetivos tem diversas fontes nefastas que vão do egoísmo ao fascismo.
Os “boys” do título compõem um grupo de humanos (em sua maioria, treinados em táticas de combate) que, por motivos diversos, tentam desmascarar a fachada de bom-mocismo dos Sete – nome dado ao principal time de heróis do planeta. Nesse segundo ano, o grupo se encontra sem seu líder Billy Bruto (Karl Urban), recluso após se tornar procurado pelo assassinato – que não cometeu – da executiva Stillwell (Elisabeth Shue) do alto escalão da empresa Vought e procurando uma alternativa de rever sua esposa.
Ao mesmo tempo, Hughie (Jack Quaid) e Annie (Erin Moriarty) trabalham juntos para conseguir uma amostra do Composto V, substância utilizada pela Vought para criar humanos superpoderosos e, assim, expor suas ações criminosas. A produção apresenta Stan Edgar (o excelente Giancarlo Esposito), CEO da corporação para servir como agente de controle que bate de frente com a autoridade do Capitão Pátria (Antony Starr), possesso pela inclusão de Tempesta (Aya Cash) em sua equipe não ter passado por seu aval.
Existe uma grande quantidade de tramas, que ainda possuem os arcos de Profundo e Trem-Bala tentando voltar para os Sete e se envolvendo com a Igreja do Coletivo, e Becca (Shantel VanSanten) tentando proteger seu filho Ryan do pai déspota. Entretanto, quase todas são bem desenvolvidas e exploradas, com alguns arcos sendo encerrados e novos iniciados, ilustrando o trunfo da narrativa de não enrolar demasiadamente. Além disso, apresentar novos elementos intrigantes prendem a atenção e criam expectativa pelas próximas temporadas.
O elenco continua ótimo. Karl Urban é certeiro na revolta e fúria constantes, desafiadas por sentimentos trazidos à tona quando um pouco de seu passado é explorado e novas camadas são adicionadas ao personagem. Starr acerta o tom de um ser extremamente mimado, megalomaníaco e egoísta, que caminha na dicotomia entre verdadeiramente se achar superior a qualquer outro e depender de carinho e atenção -não há como ser rei sem súditos sobre quem reinar, fato que o isola e o deixa, de certa forma, impotente na sua crença de que pode fazer o que bem entender. A adição de Cash ao elenco renova a energia com uma personagem aparentemente progressista e justa, mas que se revela uma supremacista branca ligada ao nazismo. A química do elenco é eletrizante, seja em momentos de humor ou de potencial pieguice driblado pelo carisma e pela entrega genuína dos intérpretes.
As cenas de ação são divertidamente violentas e não há hesitação em mostrar sangue e partes do corpo separadas de seus donos. Apesar de extremamente visual, tal violência empresta autenticidade à ameaça constante de viver num mundo onde seres superpoderosos são desprovidos de empatia. É interessante a maneira com que a série usa os poderes fantásticos para revelar suas reais índoles, exemplificando e, de certa forma, homenageando grandes histórias de super-heróis da Marvel ou DC – afinal, com grandes poderes vêm grandes responsabilidades.
Poderes, aliás, não precisam ser “super” para virem com sua carga de discernimento e juízo. Os constantes embates por poder político são outro destaque da obra. Permeando momentos em que o departamento de relações públicas da Vought precisa lidar com atitudes descuidadas de seus heróis e batalhas no cenário governamental dos Estados Unidos, todos buscam controle sobre os outros. Assim, a produção acerta ao ilustrar as consequências dessas lutas em suas vidas e nas de suas vítimas. Um ótimo exemplo é Maeve (Dominique McElligott), o retrato de uma pessoa desiludida e desesperançosa: é sua uma dolorosa fala sobre não ver luz no fim do túnel em seu futuro. Embora tenha superforça, há coisas que ela não vê como deter, resultando em traumas de uma mulher quebrada, abusada e machucada.
Apesar algumas inconsistências e conveniências narrativas (como pessoas muito famosas ou procuradas pelo país inteiro se deslocarem pela cidade com uma facilidade inverossímil), a série acerta na sátira das consequências geradas quando um grupo de pessoas é defendido e exaltado pelas palavras de líderes populares. O maior exemplo disso é na maneira nada sutil como Tempesta tem seu arco desenvolvido: manipulando o Capitão Pátria e a opinião pública com memes e fake news, ela mira nos que concordam com seus ideais preconceituosos e inflama suas ações carregadas de raiva, repulsa e intolerância. Isso se torna um vetor para a crítica sobre como a internet é usada para propagar sentimentos que levam humanos a se odiarem. Uma de suas falas aborda os defensores da ideia de que haveria racismo reverso, cristofobia ou heterofobia e reflete sua hipocrisia ao ilustrar que, para estas pessoas, tudo bem defender ideais nazistas, desde que não se use esta palavra. É didático, sem dúvida, mas um importante, necessário e bem-vindo convite à autoanálise.
A segunda temporada se encerra com um inesperado gancho, que promete continuar explorando as atitudes repreensíveis nas lutas por mais poder ao mesmo tempo que satiriza e critica a sociedade do mundo real. Com um elenco afiado e em sintonia, iconografia bem utilizada e tramas bem desenvolvidas, “The Boys” usa seus poderes com responsabilidade.