Baseado em uma assustadora história real, o longa é conduzido por interessantes personagens e entrega uma importante tese acerca da banalização do mal em nosso cotidiano.
Não são todos os diretores que conseguem proporcionar interessantes reflexões sobre a natureza humana. Por vezes sendo simplista, muitos cineastas entregam análises superficiais que pouco aprofundam a multiplicidade do caráter de nossa espécie. Felizmente o sul-coreano Bong Joon Ho não se encaixa nessa situação e se mostra um especialista na condução de interessantes reflexões sobre a sociedade, proporcionando experiências que transbordam em significado. Tomando como base uma terrível história real, o diretor premiado entrega em “Memórias de um Assassino” uma poderosa fábula sobre a maldade do homem, que se destaca por trilhar uma marcante jornada policial que jamais minimiza a sua mensagem.
Quando uma mulher inocente é brutalmente assassinada, o detetive Park Doo-Man (Song Kang-Ho) e seu parceiro Cho Yong-koo (Kim Roe-ha), agentes da província de Gyunggi, iniciam uma árdua investigação para encontrar o culpado. Dias mais tarde, o debilitado Baek Kwang-Ho (Park No-shik) demonstra se encaixar nos padrões do procurado, tranquilizando rapidamente as forças policiais. Tudo piora, entretanto, com a chegada do investigador Seo Tae-yoon (Kim Sang-kyung), oficial de Seul que alega que a situação está longe de ser solucionada, porque a busca seria por um perigoso assassino em série. Inspirada em assustadores assassinatos que se desenrolaram entre as décadas de 1970 e 1990, esse thriller intrigante se propõe a questionar os diferentes formatos que o mal pode assumir.
O longo se passa em uma Coréia do Sul dominada por um regime ditatorial e já se destaca em sua chamativa ambientação, aspecto que captura fortemente a atenção do espectador através da estonteante fotografia de Hyung Koo Kim – hábil na criação de um clima opressivo por meio de fúnebres tons cinzentos -, e, principalmente, dos detalhes concedidos ao contexto histórico em que a narrativa acontece. O diretor retrata a tensão constante dos atritos políticos (demarcados por constantes sirenes emergenciais e por violentas manifestações que tomam conta das ruas) e também é responsável pelo roteiro, que transparece não só a capacidade do homem de ir contra o seu semelhante como também a influência que estes exercem uns nos outros, fenômeno que pode resultar em eventos catastróficos.
O cineasta revela a linha tênue que separa homens bons e mais, adotando essa relativização como o cerne de sua obra, e a explora muito bem em diversos aspectos. Os protestos civis denunciam governos que se voltaram contra a sua própria população – ações violentas recebem respostas na mesma medida. E a postura assumida por tropas policiais nessas operações tendem a assumir a imagem dos alienados que se tornam cúmplices da violência.
Exemplo claro dessa unidade temática se encontra na dupla formada por Park e Cho, vividos pelos ótimos Kang-ho e Roe-ha. Eles são figuras que transitam entre cômicas caricaturas e a sedutora violência com a qual seus cargos os provocam. Cho enxerga Park como uma espécie de mentor, ainda que este seja um policial atrapalhado que se reafirma por meio de socos e imoralidades, cometendo diferentes atos violentos que justifica por estar “buscando a justiça”. Representantes de uma mentalidade ultrapassada e que prioriza a imagem acima de tudo – conforme muito bem demonstra a cena em que uma foto no jornal parece ser mais atrativa do que a verdadeira resolução dos crimes -, as personagens demonstram um nível moral não tão diferente do criminoso que procuram. Assim, encarnam a tese da produção de que a vilania não possui um rosto específico, podendo se apresentar das mais diversas maneiras.
Ainda nesse ínterim, Baek Gwang-ho acrescenta muito. Park No-shik interpreta com muita compaixão um homem que lida com deficiências físicas e mentais e reforça a ideia sobre as caricaturas construídas em torno da maldade. Consequentemente, mostra como o preconceito seleciona bodes expiatórios que consigam separar seres “normais” da sociedade daqueles injustamente vistos como “monstros”. Além disso, é igualmente importante o ritmo que se desenvolve com o decorrer da trama: partindo de um suposto padrão que os norteia na busca de suspeitos, os investigadores pouco a pouco se distanciam das pistas que possuem, de modo que o aumento gradativo da opressão atmosférica preserva o constante interesse da plateia, bem como intensifica a mensagem acerca da banalização do mal em nossas vidas.
É igualmente interessante ressaltar as transformações vividas pelo inteligente Tae-Yoon. Magistralmente interpretado por Sang-Kyung, o agente representa traços idealizados da força policial e traz consigo a pureza e a legalidade que acredita serem necessárias para esse trabalho, se conectando com aqueles ao seu lado e se dedicando verdadeiramente à proteção desses mesmos. Todavia, à medida que as mortes se multiplicam, ele se vê dividido entre a manutenção de sua filosofia pessoal e a frieza que os acontecimentos ao seu redor lhe oferecem, o que o faz oscilar de modo extremamente crível entre a honra de alguém que tem como propósito o “cuidar” e os deslizes de um ser forçado a reagir perante a crueldade. Assim, outra figura complexa demonstra a inexistência de caminhos fáceis quando tratamos da classificação do caráter humano.
Com tudo isso, “Memórias de um Assassino” utiliza uma história real para entregar uma excelente análise acerca da crueldade do homem. Desenvolvendo muito bem suas personagens principais, o longa relativiza a perversidade presente no caráter humano e denuncia a fragilidade do artifício social de construção de caricaturas na separação entre o bem e o mal. A obra de Bong Joon Ho consegue ainda demonstrar a influência que conseguimos exercer uns sobre os outros, revelando que não passamos de tábuas em branco prontas para serem preenchidas – tal como a criança que mimetiza os movimentos do policial Park na cena de abertura, por exemplo. Sendo assim, a enervante produção jamais se esquiva da urgente necessidade de se entender a maldade como um elemento banal do nosso cotidiano e que, apesar de sua difícil classificação, é constantemente definido pela essência das relações que estabelecemos com os próximos.