Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 17 de janeiro de 2021

Uma Noite em Miami… (Prime Video, 2020): ecos de 1964 em excelente adaptação

Kemp Powers adapta a própria peça com excelente elenco e ótima estreia de Regina King na direção de um longa-metragem.

Quatro figuras célebres da história norte-americana deixaram legados inquestionáveis: o ativista Malcolm X, o “rei do soul” Sam Cooke, o pugilista Muhammed Ali e o ator/jogador de futebol americano Jim Brown. Contemporâneos, esses homens eram amigos e viveram momentos-chave de suas vidas durante o movimento por direitos civis dos negros na década de 1960. No entanto, esta marcante noite de “Uma Noite em Miami…” só existiu na mente do autor Kemp Powers, cuja peça também foi adaptada por ele e levada às telas do Amazon Prime Video sob a direção de Regina King.

A proposta fictícia de Powers coloca as quatro distintas personalidades numa situação de cruzamento de trajetórias. Juntos numa noite de 1964 para celebrar uma vitória do futuro Muhammed Ali, então Cassius Clay (Eli Goree), os homens confrontam seus próprios papéis perante a sociedade, sobretudo em relação à questão negra daquele momento. Malcolm X (Kingsley Ben-Adir), que era mentor espiritual de Cassius e contava com a conversão do lutador ao islamismo, une o grupo para um inesperado bate-papo cheio de reflexões.

Enquanto a peça original possui somente um ato, esta adaptação entrega antes uma poderosa introdução apresentando os protagonistas individualmente com finas técnicas de narrativa cinematográfica. A abertura não só estabelece as personalidades e suas questões centrais, mas faz isso expondo a intenção de Kemp em elevar seu texto adaptado para extrair o melhor que uma câmera de cinema pode oferecer, especialmente nas mãos de Regina King, estreante como diretora. Em especial, é notável a forma como Sam Cooke (Leslie Odom Jr.) é revelado visualmente sem referências textuais, e como Regina prepara o gancho da sequência de apresentação de Jim Brown (Aldis Hodge) com planos a partir de dentro da casa que ele visita.

O roteiro espera que o espectador tenha um pouco de conhecimento prévio sobre os personagens e os eventos históricos que os envolve. Afinal, são pessoas consideradas “maiores que a vida” pelo impacto que tiveram como ícones negros, particularmente nos Estados Unidos. Algumas sequências fazem referência ao destino deles, ao que viria acontecer com suas vidas após o hipotético encontro. Assim, saber um pouco de antemão traz camadas extras à maneira que King e Powers retratam esta noite.

Apesar de cada conflito individual, como a conversão hesitante de Cassius, as reais intenções de Malcolm, o salto de carreira de Jim e o posicionamento musical de Sam, o que une os quatro como finalidade temática é como eles utilizam suas posições como exemplos ante a comunidade negra. O material de origem teatral, como esperado, presenteia o elenco com diálogos e monólogos que expõem tanto seu talento quanto as costuras da mensagem central. O palco principal é um simples quarto de hotel e é brilhante como roteiro e direção se combinam para manter os protagonistas interligados visualmente e no texto.

“Uma Noite em Miami…” contribui para definir 2020 como um ano particularmente marcante para as adaptações teatrais sobre grupos marginalizados. Da edição de “Hamilton” produzida pela Disney para “A Voz Suprema do Blues” da Netflix, a linguagem do cinema é mesclada com as propriedades teatrais, que comprometem o realismo, mas encontram maneiras próprias de impactar o público por sua forma. É preciso dizer também que, assim como em “The Boys in the Band“, outra peça adaptada para a Netflix em 2020, o título deste longa pode induzir a uma preconcepção equivocada sobre o tom da obra. Do mesmo jeito que Sam e Jim aguardavam uma festa para comemorar a vitória de Cassius e encontraram algo mais íntimo, os espectadores podem esperar por uma história mais centrada em ação do que na exposição de ideias e conflitos em diálogos.

Regina equilibra momentos ousados de linguagem visual (como no uso de espelhos e ângulos incomuns) com convenções narrativas (como ao alternar a trilha jazzista e sua ausência para pontuar respectivamente os momentos de alívio e de maior importância) à medida que o texto se torna mais claro em seus objetivos. Apesar da encenação repleta de nuances assinada por King, o roteiro prefere não confiar tanto na sensibilidade dos espectadores e faz seus personagens vocalizarem seus problemas e resoluções em direção ao desfecho. No entanto, é nele onde “Uma Noite em Miami…” apresenta sua conclusão mais potente: como as escolhas destes personagens de 1964 ecoam nos ouvidos de quem vive em 2020.

Malcolm, Cassius, Sam e Jim representam o fortalecimento da identidade negra nos anos 1960, cuja luta atravessa fronteiras e gerações. Os dois momentos musicais finais protagonizados por Leslie Odom Jr. são de um poder tamanho que colocam a história inteira sob outra perspectiva, a de quem ainda precisa enfrentar resistências na busca por direitos iguais mesmo sessenta anos depois. “Uma Noite em Miami…” evita dramatizar momentos de racismo e violência contra negros como há em outras obras de mesma temática. Ao contrário, tudo que é dito nas entrelinhas toma uma amplitude muito maior, mais intensa, graças à empatia do excelente elenco, da impecável “autoadaptação” de Kemp Powers e da ótima direção de Regina King.

William Sousa
@williamsousa

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