Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 17 de março de 2021

Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre (2020): a dor está no que não é dito

Longa da diretora e roteirista Eliza Hittman mostra sua força ao contar uma história de gravidez na adolescência com poucos diálogos e momentos simbólicos.

A cena que dá nome ao filme “Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre”, da diretora e roteirista Eliza Hittman (“Ratos de Praia”), que estreia neste dia 17 no Telecine, mostra a adolescente Autumn (Sidney Flanigan) respondendo a perguntas da médica que vai realizar o aborto da jovem. Ela deve responder a cada questão com uma das expressões: “nunca”, “raramente”, “às vezes” ou “sempre”. A câmera não desvia o olhar da menina em momento algum. Conforme as perguntas vão ficando mais delicadas, a até então expressão facial indiferente de Autumn vai se desfazendo em um choro há muito tempo reprimido, a ponto dela não conseguir mais dar uma resposta concreta.

O longa de Hittman é construído na base do “show don’t tell” (“mostre, não fale”) ao mesmo tempo em que não é preciso de um flashback ou mostrar uma situação explicitamente para saber o que está havendo. Com poucos diálogos e, em sua maioria, quase sempre monossilábicos, “Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre” é um filme que conta, sim, a história de uma jovem do interior retrógrado da Pensilvânia que foge por alguns dias com sua prima Skylar (Talia Ryder) para Nova York para que ela possa terminar uma gravidez indesejada. Mas tudo que é preciso entender da trama e de suas complexidades é contado em troca de olhares e cenas nas quais não é necessário ver para crer.

Mais do que um “filme de aborto”, como um votante do Oscar afirmou em carta para a diretora ao se recusar a assisti-lo, “Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre” aborda as pequenas e grandes violências, a cumplicidade e até mesmo a conivência que ainda pode ser vista na vida de mulheres de qualquer faixa etária e classe social. Essa abordagem se utiliza muitas vezes do silêncio em uma pergunta que não precisa ser respondida para saber a resposta, na forma com que muitos dos homens do filme não percebem seus abusos, nos momentos de vulnerabilidade exemplificados com uma simples cena refletida em uma janela.

A direção e o roteiro de Hittman possuem um tom humanista que não julga suas personagens, mesmo as piores, mas as mostra como são sem filtro, um recurso que se torna muito eficiente quando o filme trata as violências sofridas por Autumn e Skylar. Não é preciso ver o chefe das duas chupando os dedos das mãos delas toda vez que elas vão repassar o dinheiro do caixa para ele, ou quando a médica da clínica na Pensilvânia não dá outra opção a Autumn a não ser ouvir os batimentos cardíacos de seu feto indesejado, uma vez que a câmera acompanha a menina virando a cabeça para se dissociar do momento. 

E solidão também é um tema latente no filme, que vai desde a relação de Autumn com sua família, passando pela confirmação da gravidez numa clínica que faz de tudo para forçar as mulheres a não abortarem e chegando em uma cena emblemática envolvendo a adolescente e uma galinha aprisionada em uma máquina de jogos de azar. Mas o longa também pontua que a solidão não é sempre verdadeira. Autumn passou por um processo interno solitário de se ver grávida na adolescência, sem poder contar com seus pais emocionalmente distantes, e solta em uma cidade sufocante como Nova York, sempre lotada de pessoas que parecem estar o tempo todo sozinhas. Só que pequenos gestos de pessoas ao seu redor a lembravam de que pode não ser possível compartilhar a dor, mas ninguém é obrigado a aguentar tudo sozinho.

É essencialmente nesta questão que o olhar de Hittman brilha junto da atuação forte de Sidney Flanigan: a cumplicidade é mostrada em gestos simples de companhia, foco em um entrelaçar de mãos, uma troca de olhares de confirmação em silêncio total. Tudo isso pode demonstrar dor, afeto, desespero, amparo ou até mesmo um “não se esqueça de que estou aqui”. Poucas risadas são dadas ao longo de “Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre”, não só considerando a natureza das situações complicadas e até abusivas vividas pelas meninas, mas também porque não é necessário. É evidente os momentos de alívio e pequenas alegrias compartilhados por duas adolescentes que só parecem carrancudas o tempo todo, mas que é uma questão de linguagem. Tudo se resume a esta palavra. E a linguagem do filme não poderia ser mais sensível, ainda que intensa.

Jacqueline Elise

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