Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

A Assistente (2019): o ecossistema do abuso

Dirigido por Kitty Green, "A Assistente" expõe a realidade crua do ecossistema abusivo de empresas de entretenimento, sem precisar apelar para exageros.

Nada de close quase ginecológico na personagem, que em vez de trazer desconforto confere sensualidade a uma cena de assédio sexual. Nem o óbvio enquadramento fechado no afetado choro da vítima, que confessa o que sofreu em uma ligação telefônica. Ao contrário de “O Escândalo”, cujas cenas servem aqui de exemplo comparativo, a abordagem visceral trazida pela diretora e roteirista, Kitty Green, afasta o olhar das últimas consequências, sem que estas sejam amenizadas. “A Assistente” mostra que não há necessidade para excessos ao inserir o espectador na vivência de um sistema abusivo.

A câmera nos conduz ao lado de Jane (Julia Garner), acompanhando cada passo desta secretária de um magnata de uma produtora em Nova Iorque. Primeira a entrar e última a sair, a jovem – que almeja ser uma produtora – executa inúmeros serviços que não deveriam estar na descrição de seu cargo e sofre com repreensões abusivas por erros que não cometeu. Jane testemunha situações inadequadas de abuso de poder enquanto lida com a pressão do trabalho de forma solitária, onde sua voz é constantemente silenciada.

Green escolhe uma diferente abordagem ao retratar a pauta do #MeToo, pois o foco não são os episódios de assédio ou abuso e sim a rede de silêncio que se forma para proteger homens em posições de poder. O chefe, uma figura Weinsteinesca, não aparece em tela ou sequer tem o nome revelado. É uma decisão acertada que protagoniza aqueles que estão ao redor como engrenagens desse ecossistema cuja existência serve apenas para alimentar o próprio poder de quem está no topo, enquanto não permite a ascensão de figuras femininas. Isso é reafirmado por um diálogo de Jane com o RH e por uma breve cena em que duas produtoras conversam na cozinha. Este sistema jamais permite que as mulheres tenham alguma relevância, ao mesmo tempo que as aprisionam, pois sair de suas posições pode ser danoso às suas carreiras. Afinal, trabalhar mais duro que todos e não ter o reconhecimento devido a não ser que se sujeite ao abuso de poder ou até sexual, é uma “grande oportunidade” e deveriam ser gratas por isso.

O realismo do filme é impressionante e crucial para conseguir o efeito que almeja. Isso se apoia na construção elaborada do mise-en-scène, tornando o extracampo imprescindível para a compreensão total da narrativa. O tempo todo acompanhamos tão somente Jane e isso nos deixa profundamente imersos em seu ponto de vista, absorvendo o restante da trama da mesma forma que a personagem, através de vozes que vazam pelas paredes, conversas paralelas, informações espalhadas nas telas de computadores, nos papéis e objetos cênicos, entre outros detalhes. A atuação de Julia Garner é o toque final. Entrega o subtexto, a emoção engolida e o sufocamento em suas expressões, posturas e entonações. Aliada à direção, tudo casa para que seja impossível não se colocar no lugar de Jane, caminhar com ela, sentir com ela.

O longa se preocupa em cobrir todas as desculpas e questionamentos desnecessários que surgem cada vez que o silêncio das vítimas é rompido. Se ainda restam dúvidas de como os casos de assédio e abuso sexuais acontecem e porque se leva tanto tempo para serem revelados, A Assistente deu, senão todas, a maioria das respostas. Reproduz todos os estágios e posições que as mulheres conseguem exercer nesse meio e tudo o que precisam se sujeitar para apenas poder fazer o seu trabalho. E com um chefe, que é só mais um chefe como tantos outros “harvey weinsteins” que ainda estão escondidos e protegidos por todos os lados, que não precisa lidar com nenhuma consequência dos seus atos, pois sempre haverá Janes para limpar – metaforicamente ou não – as suas sujeiras.

Encapsulando tudo isso em um único dia de trabalho, do qual o espectador chega ao fim quebrado e exausto, o longa parece perguntar – em tom de desafio – a todos os que estão sentados na poltrona do privilégio e que jamais precisariam passar por nenhuma das situações representadas: você suportaria?

Tayana Teister
@tayteister

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