Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

First Cow (2019): ingredientes de uma autêntica amizade

Filme conta a história de uma bela amizade no século XIX, construída nos detalhes e silêncios da rotina de dois homens que encontram, um no outro, o conforto que o verdadeiro companheirismo pode trazer.

Uma jovem passeia com seu cachorro, que acaba encontrando dois esqueletos humanos enterrados um ao lado do outro. A curiosidade desperta nela (e no espectador) e o filme de repente vai para 1820 para contar a história das duas pessoas ali mortas. Assim começa “First Cow”.

Adaptado do livro “The Half Life” de Jonathan Raymond, o longa conta a história de Otis “Cookie” Figowitz (John Magaro), padeiro que viaja com um grupo de caçadores e acaba encontrando King-Lu (Orion Lee) a caminho de um vilarejo. Nu e desprotegido, Lu recebe a ajuda secreta de Cookie para sobreviver. Assim nasce uma amizade pura e genuína, que é o centro da narrativa do filme.

O contraste do primeiro encontro é espertamente invertido no segundo, pois quando Lu devolve as gentilezas, fica fácil de comprar a ideia de que ali facilmente nascerá uma conexão estabelecida pela confiança depositada reciprocamente. Cookie é convidado a se hospedar na frágil cabana de Lu, onde organicamente começam a tocar suas rotinas caseiras de tal forma que parece que já moravam juntos há anos. A diretora Kelly Reichardt (também responsável pelo roteiro com o próprio Raymond) deixa as cenas correr sem pressa, com planos detalhe que enfatizam os afazeres domésticos e, assim, transmite a naturalidade com que tocam suas vidas juntos. Entretanto, isso resulta numa obra com ritmo lento que pode, eventualmente, causar tédio.

A trama ganha novas camadas quando um rico inglês (o ótimo Toby Jones) chega para morar no local, trazendo consigo uma vaca, a primeira daquele lugar isolado (daí o título). Ao conversarem sobre o animal, Cookie divaga sobre os biscoitos que poderia fazer com o leite, despertando em Lu a oportunidade de adquirir o ingrediente clandestinamente, ordenhando durante a noite.

Aqui a obra ganha tons de críticas capitalistas, onde ilustra que os riscos que a classe baixa precisa assumir para tentar melhorar de vida e mesmo assim não devem conseguir. É uma abordagem interessante que ganha elementos de melancolia e esperança, temperados com um local aparentemente calmo, mas que é contrastado com a ameaça da dupla ser descoberta e, assim, morta.

A figura da vaca como instrumento de esperança é bem representada na direção de fotografia de Christopher Blauvet, que apresenta o animal de forma quase onírica com tons quentes que escancaram a beleza natural do lugar, que não torna a ser belo pelo resto do longa. É um exemplo de uma direção refinada, que consegue também elegantes planos que emolduram seus protagonistas quando eles estão no seu dia-a-dia, ilustrando a frequente repetição de ações que quase se congelam no tempo.

Com sua trama linear e ritmo lento, o filme surpreende ao trazer tantas camadas em seu discurso, indo além da amizade da dupla principal, mas também debatendo como a necessidade de correr riscos para tentar ter uma vida digna é uma jornada constantemente injusta e que impede que se relaxe e aproveite o presente. Há muito aqui sobre privilégios, desmontando a teoria de meritocracia ao mostrar que o ponto de partida é muito díspar.

“First Cow” é um filme que enriquece sua história pelos detalhes de objetos e ações rotineiras, criando a conexão familiar entre dois homens no confortável silêncio que conseguem na presença do outro. Seu ritmo lânguido pode afastar alguns espectadores, mas é necessário para transmitir as ideias de conforto e rotina caseira a que se propõe. Porém, se revela uma obra mais profunda ao conseguir debater as injustiças do capitalismo que são refletidas no mundo moderno.

Bruno Passos
@passosnerds

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