Com qualidade fenomenal de animação, Makoto Shinkai entrega uma obra intimista sobre duas pessoas de idades distintas que se encontram e se ajudam para superar inseguranças.
“O Jardim das Palavras” se passa no início da estação chuvosa de Tóquio e conta a história de Takao Akizuki (Miyu Irino), adolescente que tem o sonho de se tornar sapateiro. Quando chove, ele mata as aulas do período matutino para ir até seu jardim favorito para treinar seus projetos em um caderno numa pequena cobertura. Num desses dias, ele encontra Yukari Yukino (Kana Hanazawa), uma mulher adulta que está matando o trabalho enquanto come chocolate e bebe cerveja. Os dois vão se encontrando repetidamente no mesmo lugar sempre que chove, porém nunca dão informações pessoais um ao outro.
O filme é escrito e dirigido por Makoto Shinkai (do fantástico “Your Name”) para retratar figuras que se sentem à parte da sociedade. Yukino mata o trabalho devido a problemas pessoais que a afetam no ambiente de trabalho, deixando-a perdida e sem rumo. Akizuki também foge de pessoas e seu próprio sonho de querer ser sapateiro é uma representação de seu anseio, pois é uma profissão solitária.
Em busca de isolamento, gostam de sair quando está chovendo, pois os indivíduos em geral não costumam ir para a rua na chuva ou acabam se escondendo sob seus guarda-chuvas. Assim, cria-se a sensação de que a cidade ficaria mais vazia como um todo e os protagonistas se sentiriam seguros para serem eles mesmos. Quando há sol, ou seja, pessoas, eles se retraem. Neste ambiente em que a chuva representa um porto seguro, uma toca para onde eles vão em busca de conforto onde não serão julgados, acabam sendo terapeutas acidentais um do outro.
Isso ocorre por meio de diálogos muito orgânicos, afinal não saem desabafando seus problemas e contando sobre suas vidas, apenas conversam e, nessas conversas, vão se curando pouco a pouco. As palavras do título não são as ditas, mas as sentidas. A chuva, além de artifício que cria o isolamento que querem, é uma metáfora para limpeza, para deixar o que está ruim dentro deles se esvair a cada “lavagem”.
A produção é sobre amor, mas é necessário conhecer um pouco da cultura oriental para que o sentido seja esclarecido. Na língua japonesa, há dois termos para “amor”. Uma é “ai”, mais ou menos o que entendemos como amor romântico; e o outro é “koi”, o amor em que um deseja o bem e a felicidade alheia, porque é onde encontra sua própria alegria. A relação entre os protagonistas é focada no “koi”. Um bom exemplo disso é a cena do pé, que podia ser facilmente algo levada para tensão sexual, já que é um momento mais íntimo, mas não o faz. Este momento acaba sendo a metáfora perfeita sobre os personagens se conectarem de maneira profunda.
O roteiro apresenta o conceito de “andar sozinho”, que significa tocar sua vida, perseguir seus sonhos, seguir seu próprio caminho. Os dois personagens, por motivos diferentes, não conseguem fazer isso no início, estão presos. Porém, encontram um no outro a força de seguir em frente, de continuar com suas vidas, e não só empurrá-las com a barriga.
Para contar uma história assim, a narrativa é, acertadamente, parada, quieta, as cenas correm sem pressa, contando uma história leve e intimista. Créditos para Shinkai, que trouxe esse roteiro à vida com bom uso da animação, da edição de som e da trilha sonora para carregar o espectador pelas jornadas dos personagens. O diretor soube brincar com ângulos de câmera, foco e planos detalhes que não estão lá só para mostrar como a animação é (muito) acima da média, mas para dar informações sobre algum personagem. O som, principalmente o da chuva, é fora de série, em sua grande quantidade e diferentes intensidades, que ocorrem para fortalecer as metáforas propostas e ter sua riqueza de detalhes valorizada. A mixagem de som quase ofusca a trilha suave (com notas leves de piano), apropriada para uma obra sobre duas pessoas que se conhecem e criam um afeto genuíno entre as mesmas.
O jardim em si é um fenômeno da animação. Luzes, textura, reflexos na água, tudo impressiona. Quando a câmera mostra apenas elementos naturais, é impossível não se pegar pensando que algumas tomadas só podem ter sido feitas no mundo real. O espetáculo dessa incrível atenção aos detalhes é refletido também no fato de que o lugar existe em Tóquio, chamado Shinjuku Gyoen, e basta uma simples busca no Google para comparar imagens e se embasbacar com a qualidade atingida. Neste idílico jardim, a vida é bela para os personagens e a maneira como o diretor usa a água para simbolizar sentimentos é simplesmente brilhante.
Irino e Hanazawa fizeram ótimos trabalhos de vozes mantendo a linguagem intimista do texto, com uma única exceção perto do fim quando as emoções estão mais à flor da pele e resulta numa cena que extrapola o tom de todo o resto do filme – torna-se um momento chave que, infelizmente, fica um pouco desconexo. Entretanto, nesta mesma cena, Shinkai faz um jogo de chuva e sol que diz tanta coisa sobre a situação e os protagonistas que compensa e emociona.
“O Jardim das Palavras” é delicada não só no traço, mas também na maneira de contar uma história leve sem se deixar levar para a discussão polêmica que poderia nascer de duas pessoas em idades tão distintas se aproximarem. O foco não é esse e a abordagem sobre isso passa longe de ofender. Ao invés disso, a narrativa se concentra no fato de, mesmo estando em dois momentos tão ímpares na vida, há similaridades e gentilezas o bastante para que algo positivo nasça para ambos. É impressionante que se consiga tamanha densidade dramática em apenas 45 minutos, que valem a pena até no epílogo pós-crédito, que acrescenta beleza ao conto.