Estreia na direção de longas-metragens do experiente diretor de fotografia André Carvalheira, o filme é uma história atual e afiada sobre as permanentes desigualdades sociais do Brasil, as relações de classe e poder e a falta de planejamento urbano das cidades.
Atenção: este filme é um novo lançamento nos cinemas que já estão reabertos no Brasil. O Rapadura recomenda que todos consultem os protocolos de prevenção contra o coronavírus de seus cinemas favoritos para garantir sua segurança.
Na trama, o jovem e renomado arquiteto Augusto (Renan Rovida) acompanha a construção de seu novo empreendimento imobiliário na região de Brasília. De inspiração modernista, a construção com nome em inglês vende a ideia de uma nova forma de vida, espaço para ascensão das virtudes do homem moderno. Até um apartamento mobiliado com atores interpretando uma família padrão (papai, mamãe, filhinha e empregada) foi construído, no melhor estilo brainstorm disruptivo da equipe de marketing, para transmitir aos visitantes um vislumbre desse ideal.
O problema é que tanto a vida pessoal de Augusto, com uma esposa depressiva e um filho pequeno a quem não dá muita atenção, quanto seu meio profissional revelam uma realidade contaminada por chantagem, corrupção e ganância, bastante distante da utopia vendida. O próprio empreendimento, situado bem ao lado de uma favela construída em uma zona de preservação ambiental, atravessa esse sonho com as tintas da realidade. Enquanto isso, uma van ronda a cidade gravando a campanha política de um candidato a senador.
Em declarações, o diretor André Carvalheira contou que o roteiro havia sido escrito há alguns anos e deixado na gaveta, amadurecendo. Enquanto isso, ele trabalhava fotografando alguns dos melhores filmes brasileiros contemporâneos, como “O Último Cine Drive-In” e “Ainda teremos a imensidão da noite”. A proposta para realizar o filme veio quando o produtor Alísson Machado da Machado Filmes o procurou em busca de um novo projeto. A partir daí, ele contou com a colaboração de Pablo Gonçalo e Aurélio Aragão para aprofundar a narrativa e encontrar o tom adequado para uma trama que misturasse o humor ácido com toques de nonsense.
É nesse espírito e na progressão de situações cada vez mais inacreditáveis que a história se sustenta e capta o espectador, muito mais do que a partir de uma linearidade cujo arco do protagonista seja o que mais interessa. Tal desafio narrativo poderia facilmente descambar para a confusão de múltiplas tramas, mas aqui há uma aura geral de absurdo que sustenta a produção de forma equilibrada do começo ao fim.
Algumas críticas vêm descrevendo New Life S/A como uma obra surrealista, mas pode ser um erro conceitual descrevê-lo desse modo. Não há elementos audiovisuais que remontem a esse estilo propriamente dito, como o conhecemos na pintura, poesia e mesmo no cinema, com nos trabalhos de Luis Buñuel, ou mesmo no primeiro projeto de Chistopher Nolan, “Following”. O que há de mais marcante é uma sensação de absurdo cada vez maior a cada cena, como quando um operário da obra se recusa a realizar o serviço por causa do atraso de seu salário e o encarregado que assume a função acaba caindo do prédio e morrendo. Assim, seria mais preciso classificá-lo como uma produção absurdista, como atribuído ao escritor francês Albert Camus e que no cinema encontra paralelos nos filmes de Roy Andersson, como em “Um pombo sentou em um galho refletindo sobre a existência”.
Com uma estética própria, destaca-se o absurdo das situações e de saber que elas são reais ou, pelo menos, muito possíveis de acontecerem em qualquer canto do país. A falta de lógica e o comportamento errático e destrutivo dos personagens, a representação mesquinha das elites econômicas, a corrupção e o egocentrismo dos políticos são elementos com os quais nós, brasileiros, já estamos acostumados. Nesse sentido, a narrativa parece sinalizar, um a um, vários dos absurdos que persistem em nossa sociedade para extrair deles uma dimensão ridícula e, no fim, até mesmo nos fazer achar graça. É aí que está sua coragem, que, segundo o diretor, veio da forma como ele e seus amigos encaram o que tem acontecido no Brasil nos últimos anos, extraindo risadas de ocasiões que só seriam cômicas se não fossem absolutamente trágicas.
A direção de André Carvalheira oferece planos criativos para um projeto de orçamento modesto, realizado com menos de R$ 800 mil captados a partir de leis de incentivo regionais. Experiente atrás das câmeras, o realizador já havia dirigido o curto “Dia de Folga”, que também se passa no universo da obra. Ademais, ele foi produtor executivo de “A cidade é uma só” do diretor Adirley Queiróz, que trata da formação improvisada e sem auxílio de Ceilândia, cidade no entorno de Brasília. Desse modo, a temática social associada à questão do urbanismo parece ser um ponto de retorno para ele.