Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 03 de dezembro de 2020

Mulan (2020): honrosos acertos, desonrosos erros

Entre grandes acertos e grandes erros, a adaptação em live-action da animação de 1998 possui um visual de encher os olhos, mas um roteiro fraquíssimo que desperdiça ótimos atores e acaba ilustrando como Hollywood ainda tem muito receio de mergulhar numa linguagem cinematográfica e cultural de outro continente.

Seguindo sua lucrativa onda de adaptar seus clássicos da animação em filmes live-action, a Disney traz ao mundo uma de suas heroínas mais queridas em carne e osso com “Mulan”. Inicialmente planejado para ser lançado em março de 2020, a pandemia do COVID-19 fechou os cinemas e obrigou o estúdio a executar outros planos, decidindo pelo lançamento direto em streaming pela Disney Plus.

Não que o longa não tenha recebido sessões em cinemas ao redor do mundo – para aqueles que conseguiram ver esta obra na tela grande, a experiência foi definitivamente mais rica. A fotografia de Mandy Walker é deslumbrante, com uma sequência aparentemente infinita de belas tomadas cheias de cores e vida, abraçando o tom onírico e fantasioso da trama que incorpora elementos mágicos. Os cenários e paisagens são estonteantes e complementam a imersão visual com atores em magníficos figurinos ricamente detalhados, representando áreas que poderiam tranquilamente render indicações ao Oscar para as responsáveis Anne Kuljian e Bina Daigeler, respectivamente.

Os problemas do filme começam com seu roteiro. Acontece, com uma frequência incômoda, do espectador ter uma expectativa levantada e, na hora do ápice, ela ocorre de forma apressada e não deixa o momento destilar a epicidade que poderia ter. Essa repetida sensação de oportunidades perdidas só não é mais frustrante do que o arco narrativo da bruxa Xianniang, interpretada por Gong Li. Apesar do desempenho da atriz e de seu impressionante visual, a subtrama que a envolve é de uma pobreza narrativa que fica muito aquém de uma produção deste nível. Se as motivações da antagonista não são bem exploradas desde o início, ela se resume a uma muleta de roteiro, que, neste caso, mal dá apoio à jornada da protagonista.

Esse desequilíbrio entre boas atuações e arcos mal desenvolvidos está presente em outros personagens também, como no Böri Khan de Jason Scott Lee. Assim como o vilão da animação de 1998, Shan-Yu, Khan é unidimensional e sedento por poder, mas sua postura e aspecto são absolutamente ameaçadores e conferem presença ao antagonista. Já Jet Li pouco aparece em tela para mostrar qualquer outra coisa além de porte imponente. Entretanto, há melhoras com os personagens que, basicamente, dividiram o que foi Li Shang no original: o Comandante Tung (Donnie Yen) e Honghui (Yoson An), um jovem soldado que se aproxima de Mulan com a dose necessária de charme.

Liu Yifei como Mulan não é a melhor em tela, mas segura a onda e transmite bem as nuances de sua jornada de autoaceitação e no conflito de buscar seu lugar em família. A atriz merece mais louvor quando se percebe que dispensou dublês para a maioria das cenas, algo que sempre fornece à direção a oportunidade de criar uma imersão mais eficiente. A respeito das diferenças entre as protagonistas da animação original e deste live-action, uma se destaca. Esta é dotada de enorme quantidade de chi (pronuncia-se “ki”), o que é retratado como, praticamente, poderes mágicos. Ao contrário da obra de 1998, onde a personagem principal precisou treinar para se tornar uma grande guerreira, aqui ela já é um prodígio. Seu arco nasce de constantemente ouvir que não é certo usar suas habilidades. A proposta de buscar se libertar das amarras impostas pela sociedade em prol do bem maior é ótima, mas sofre com um roteiro que tira o brilho de momentos chaves de transformação de sua heroína.

O longa merece elogios por fugir do lugar-comum das adaptações em live-action da Disney, que costumam ser, praticamente, cópias das animações originais. Pelo contrário, “Mulan” busca ser seu próprio filme e trazer uma nova maneira de contar a história do poema original. Este não é um musical, mas as notas das canções da animação aparecem em versões instrumentais nos momentos certos, onde o espelho dos eventos em ambas as obras funciona bem. Mesmo assim, há belas versões da clássica Reflection durante os créditos. Uma em inglês (voz de Christina Aguilera, que também canta a nova canção Loyal Brave True) e outra em mandarim (interpretada pela própria Yifei).

A direção é da neozelandesa Niki Caro, do excelente “Encantadora de Baleias”, mas é inconsistente. Ela faz bom uso de planos abertos para que a tela se preencha com os belos cenários, mas poderia ter feito melhor uso das habilidades físicas de Yifei, se valendo de menos cortes e deixando cenas fluírem. Ao mesmo tempo, se deixa lutas muito picotadas, varia ângulos de câmera de maneira a dar maior dinamismo. O resultado é vacilante, com instantes de empolgação e brilhantismo e outros de tédio e opacidade. Há também alguns momentos desnecessariamente arrastados, que parecem achar que o público não vai conseguir entender a sequência mostrada se a câmera não der múltiplas dicas visuais do que está por vir.

Se os cenários e paisagens são incríveis, o mesmo não pode ser dito sobre os efeitos especiais gerados por computador. É nítido, às vezes, a camada da imagem em CGI por cima da filmada, afastando o espectador da emoção objetivada em tela. Um defeito imperdoável para uma produção tão cara.

Apesar de ser uma obra ocidental, há bastantes referências à cultura chinesa, a começar pelas coreografias das cenas de luta, que remetem a obras como “O Tigre e o Dragão” e “O Clã das Adagas Voadoras” (embora não estejam no mesmo nível). Até mesmo a ausência do dragão Mushu e do cabelo da protagonista se manter longo são elementos advindos da disposição da produção de procurar fazer um longa mais amigável ao público chinês. Porém, a linguagem ainda é absolutamente hollywoodiana, e muito há o que se fazer para conquistar o respeito desta audiência. O que poderia ser um interessante passo rumo a uma mescla que pode render bons frutos no futuro se revela uma obra cheia de estereótipos oriundos de uma indústria que parece ter medo de mergulhar no cinema e na cultura do espectador asiático, ao mesmo tempo que quer o dinheiro de sua vasta bilheteria. Se o objetivo era agradar a plateia chinesa tratando com respeito uma lenda bem conhecida no país, empregar um time criativo oriundo de lá provavelmente teria resultado num filme mais fiel ao conteúdo original.

Apesar de significativas falhas, o saldo é levemente positivo. O desarmônico roteiro é compensado com atuações sólidas, figurinos belíssimos, cenários embasbacantes e fotografia que mescla esses elementos para gerar o tom certo de fábula e encantamento. Acima de tudo, “Mulan” não é apenas uma refilmagem quadro-a-quadro da animação original, o que levanta esperanças de que o estúdio do ratinho mais famoso da história faça grandes obras com suas propriedades intelectuais, e não apenas minirreformas que se resumem a colocar uma skin nova por cima da original.

Bruno Passos
@passosnerds

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