Realização de Walter Lima Jr. se inspira no clássico "A Volta do Parafuso", mas se sustenta pouco como obra derivada ou produção de visão própria.
*Filme disponível na Mostra MacaBRo de Horror Brasileiro Contemporâneo, evento com exibições online gratuitas através da plataforma de streaming Darkflix entre 28 de outubro a 23 de novembro de 2020.
Já foram feitas várias adaptações do clássico da literatura de horror escrito por Henry James: “A Volta do Parafuso” serviu de base, por exemplo, para o excelente “Os Inocentes” de 1961 e para a badalada “A Maldição da Mansão Bly” de 2020. Diante de tantas obras inspiradas no livro, os realizadores precisam se equilibrar entre os elementos marcantes da fonte original e os aspectos autorais propostos à história para justificar mais uma adaptação. “Através da Sombra“, porém, mal se equilibra entre essas facetas.
Walter Lima Jr. (“Os Desafinados“) comanda a versão brasileira de “A Volta do Parafuso“, trazendo a trama tradicional para o cenário do interior nas plantações de café. Laura (Virginia Cavendish) é contratada pelo rico empresário Afonso (Domingos Montagner) para cuidar e educar seus sobrinhos órfãos na propriedade da família. Lá recebe a ajuda dos escravos e da governanta Geraldina (Ana Lúcia Torre), até o momento em que desconfia existirem segredos escondidos na casa e começa a avistar pessoas que ninguém mais vê.
Existem alguns traços essenciais para a ambientação das produções que se inspiram no livro de Henry James, a começar pela percepção da residência como um lugar misterioso que revela aos poucos suas ameaças. Nesse ponto, a direção de arte de Alice Carvalho (“Divino Amor“) e a fotografia de Pedro Farkas (“Não Por Acaso“) criam uma atmosfera sombria através da arquitetura de época e da escuridão das noites em que os aparelhos de iluminação começam a falhar, mas o cineasta explora pouco as possibilidades estéticas do cenário. Algo semelhante ocorre com o estilo de terror psicológico que se desdobra na narrativa a partir da sugestão do sobrenatural, já que as molas propulsoras para isso são Antônio (Xande Valois) e Elisa (Mel Maia) e eles mal se conectam a essa dimensão do roteiro – a obra parece mais um drama de costumes com insinuações tímidas e inexpressivas da existência de algum mistério.
Mesmo quando novos elementos são inseridos, seus efeitos não chegam a se concretizar porque são muito pontuais ou trabalhados de modo excessivamente discreto. Assim, a tensão sexual entre a protagonista e outros dois personagens no primeiro e no terceiro ato não se relaciona com a trama como um todo, o que torna o recurso uma possibilidade interessante desperdiçada. Além disso, a escolha de ambientar a história no Brasil da década de 1930 quando a mentalidade escravista ainda dominava as relações de trabalho não vai a lugar nenhum, afinal os trabalhadores negros pouco interferem na ambientação e no desenvolvimento narrativo, assim como a exploração do trabalho não é integrada aos conflitos dramáticos. Até a névoa resultante da queima do café, que poderia aprofundar a sensação sobrenatural, parece um artifício sem grande impacto.
Os problemas para equilibrar inovações e tradições na narrativa também afetam a articulação entre suspense e terror da produção. À medida que o tempo transcorre, o aspecto sobrenatural é atirado sem preparação como se ele apenas precisasse constar de qualquer maneira para justificar a inspiração na fonte original. As revelações de espíritos para Laura acontecem sem uma construção dramática, o universo temático apresenta muitos pontos mal desenvolvidos ou sequer trabalhados e a atmosfera sombria se enfraquece nos momentos em que ela seria ainda mais importante. Logo, é difícil se envolver com a protagonista, sentir os perigos que a cercam, compreender o que acontece e se impactar com alguma ameaça enigmática em cenários tão bem iluminados e assépticos.
A expressividade está igualmente ausente nas tentativas de evocar o terror em torno de Laura, Elisa e Antônio. Os três atores se esforçam para traduzir em seus personagens a influência nociva da casa: a mulher sofre psicologicamente com os eventos inexplicáveis que presencia, sendo interpretada por Virginia Cavendish como alguém que pode ser vista como louca pelos outros. Já as crianças apresentam mudanças extremas de comportamento, cabendo à Mel Maia desenvolver uma postura agressiva e confrontadora para a menina e a Xande Valois adicionar uma personalidade sexualizada incompatível com a sua idade. Porém, o trio é prejudicado pelo andamento do filme, que não impede as variações comportamentais dos personagens parecerem apenas acessos súbitos também sem construção dramática. As inserções atrapalhadas e atropeladas de convenções do terror sobrenatural comprometem as atuações e a coesão do enredo, mal remetendo à sua inspiração.
Ao fim e ao cabo, “Através da Sombra” não define o que pode ser nem como pode trabalhar suas referências. Como história de casa mal-assombrada, não cria seu inverso próprio para o local; como estilo de sugestão para o sobrenatural, não estabelece uma preparação crescente para o clímax. Como adaptação do trabalho de Henry James, não se apropria dos elementos originais e soa como uma coleção gratuita de características do livro; como releitura de traços pontualmente inovadores, não aprofunda aspectos que poderiam das novas camadas à narrativa. Diante dessa nova volta do parafuso, emerge um projeto que não prepara o suspense de um mistério a ser esclarecido nem entrega o terror de momentos sugestiva ou explicitamente tensos.