Entregando a melhor temporada da série desde a primeira, Peter Morgan mostra que é possível sim contar uma história já tão bem conhecida pelo público de forma a ainda despertar interesse e emoção.
É estranho pensar em grandes figuras antigas como Alexandre o Grande, Cleópatra ou Napoleão Bonaparte, como pessoas reais, humanas, quando desde o início de nossa educação os vemos como ícones, quase parados no tempo, verdadeiras estátuas. Ao assistirmos filmes, séries, ou documentários que os retratam, talvez o impacto de suas vidas e ações não nos alcance tão profundamente quanto poderia se seus reinados já não fossem tão antigos e fincados na memória do Tempo. Mas “The Crown” chega em sua quarta temporada trazendo a figura de Lady Diana Spencer, e é agora que ficção e realidade irão confundir a cabeça do espectador, ao fazê-lo escolher lados em uma história que parece ainda não ter sido concluída, apesar de seu já conhecido e terrível fim.
Depois de deixarmos a rainha Elizabeth II (Olivia Colman) em seu Jubileu de Prata no final da terceira temporada, começamos o quarto ano da série com a ascensão de Margaret Thatcher (Gillian Anderson), recém-eleita como primeira-ministra do Reino Unido. Conhecemos também uma jovem Diana (Emma Corrin), que se apaixona pelo príncipe Charles (Josh O’Connor), enquanto este segue apaixonado por Camilla (Emerald Fennell), mas precisa escolher sua esposa – e futura rainha.
Não há dúvidas sobre o foco e mérito desta temporada: Diana e Charles. Representando o maior desafio que o roteirista e criador da série Peter Morgan já teve de enfrentar, a história conturbada do casal está aqui em seu início, e certamente será o primeiro contato de muitos jovens espectadores com a memória da princesa de Gales. Morgan já havia construído a base sobre Charles desde a segunda temporada, ao mostrá-lo como uma criança sensível que se sentia abandonado pelos pais. Seu abandono e ressentimento continuam na terceira temporada, transformando-se até em desprezo pela própria família, e pelas escolhas que sua posição o força a fazer. Diana, uma jovem inocente que cresceu acreditando em contos de fadas, se apaixona pela imagem de Charles sem conhecê-lo verdadeiramente, e ao se ver presa nessa relação, ela logo descobre que nunca pode servir como substituta para o desejo tão profundo de pertencimento que Charles busca em outra mulher, o verdadeiro amor de sua vida.
A pergunta que fica é: como retratar uma história tão bem conhecida pelo público, de forma que ainda desperte interesse, sem trair o que realmente aconteceu, mas trazendo cores próprias aos cantos que permanecem sombrios? A resposta de Morgan parece ser condizente com seu trabalho desde o início da série: crie e estabeleça personagens, e conte as suas histórias, não as das figuras verdadeiras em quem são baseados. É verdade que “The Crown” respeita a se atém, na maior parte do tempo, aos fatos, mas se não fosse a dramatização que a ficção propõe, a produção perderia todo seu poder.
A quarta temporada se utiliza ainda de paralelos constantes para apresentar a história, sejam eles entre Thatcher, a primeira-ministra que veio do nada e trabalhou esforçadamente para chegar em seu posto, e Elizabeth, a rainha que nasceu em privilégio e foi colocada em seu posto por direito de nascença; ou entre Thatcher e Diana, quando são colocadas à prova pela Família Real no Teste de Balmoral; entre o privilégio desta mesma família e a decadência da população britânica frente ao desemprego estarrecedor; e entre todos os que estão debaixo da falsa proteção do Palácio de Buckingham.
Dessa forma, Morgan cria arcos próprios para cada episódio, semeando tais paralelos por vezes de formas sutis, mas suficientemente claros para serem notados pelos espectadores que já conhecem o estilo de “The Crown” – e que o apreciam – culminando em uma leva de 10 episódios satisfatórios, cada um a sua maneira. Destaque para o episódio Fagan, mostrando a invasão de Buckingham pelo cidadão Michael Fagan, que simplesmente entra no Palácio e nos aposentos da rainha para informá-la que seu país está sendo destruído por Thatcher, e que alguém deveria fazer algo a respeito. O episódio alterna entre a realeza e a vida de Fagan, que enfrenta o desemprego, a falta de cooperação do sistema, e a ausência de sua mulher e filhos, que o deixaram.
Tudo isso é visto como fruto das medidas severas de Thatcher a fim de revitalizar o país. A governante foi figura polêmica no cenário político, e não faltam obras que a retratem, sendo a mais famosa delas “A Dama de Ferro”, protagonizada por Meryl Streep. Aqui, ela é interpretada por Gillian Anderson, que apesar de fazer um ótimo trabalho em sua performance, algumas vezes distrai por parecer estar sempre tentando emular trejeitos da verdadeira Thatcher. É neste núcleo também que a quarta temporada falha, ainda que minimamente, por não conseguir estabelecer tão bem quanto já fizera com outros primeiros-ministros, quem de fato foi a governante, e por que ela foi tão polêmica. Não que isso fosse necessário, mas Thatcher disputa a atenção da temporada com Diana, e perde invariavelmente.
Os olhos estão sempre em Charles e Diana, e muito disso se deve aos atores Josh O’Connor e Emma Corrin, excelentes intérpretes de personagens tão complexos, voláteis e icônicos. Não há uma vilanização de Charles, como considerações superficiais podem concluir, e sim a face verdadeira de quem ele é. Talvez o personagem mais bem desenvolvido a partir da terceira temporada, Charles acaba sendo um fruto de seu meio, e não importando o tamanho do privilégio que o acompanha, ele continua sendo um ser humano, do qual sentimentos não fogem.
A Diana de Corrin consegue demonstrar doçura, insegurança, encanto, insatisfação, solidão, às vezes tudo em uma só expressão. Ao mostrar a batalha real enfrentada pela princesa contra a bulimia, a série não esconde seu sofrimento, nem seus momentos de brilho, como quando é abraçada pelo povo, reconhecida como um deles, e não como mais um dos “frios” membros da Família Real. Diana aceita o único amor que recebe, e por consequência continua a ter negado o amor de seu próprio marido.
O papel de Olivia Colman como Elizabeth é extremamente pontual, seja ao servir como paralelo para Thatcher, ou seguindo como uma mãe distante para Charles. O senso de dever entranhado em seu sangue, frente à nossa tendência em amar Diana (alguém tem de fazê-lo), cria uma estranha e intencionada sensação de que a Coroa mais do que nunca será a verdadeira vilã deste falso conto de fadas. Afinal, nós já sabemos o que acontece, a História sabe. Mas, na dramatização de Peter Morgan, o que vai acontecer? Além de ser a melhor temporada desde a primeira, o quarto ano corresponde à promessa de que ainda faz sentido esperar com antecipação por “The Crown”. O final dessa história não pode ser diferente, mas os caminhos até lá podem ser cheios de cor.