Criado, composto, escrito e protagonizado pelo magnético Lin-Manuel Miranda, "Hamilton" é uma linda ode aos verdadeiros arquitetos da nação americana, que durante séculos foram condenados ao silêncio.
“Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade… “
Imortalizado como um dos pais fundadores da História norte-americana, Thomas Jefferson foi o autor da “Declaração de Independência” dos EUA, documento chave no processo de libertação em relação à Inglaterra. Dono de frases inspiradoras como a parafraseada acima, o terceiro presidente dessa nação balanceou ideais típicos do liberalismo político e traços de uma mentalidade racista, impondo diversos obstáculos àqueles que fugiam da universalidade proposta em seus escritos. Pintado de forma majoritariamente positiva, Jefferson teve seus feitos contados durante épocas por vozes que priorizaram sua superficialidade benéfica, jamais dispostas a responsabilizá-lo por seus aspectos mais negativos. Ciente do impacto que alterar os narradores de importantes histórias pode causar, o genial Lin-Manuel Miranda criou “Hamilton“, épico que conta a trajetória de Alexander Hamilton – interpretado por ele próprio – através da inconfundível vivacidade de grandes musicais, disponibilizado pela Disney Plus.
Lançada no ano de 2015 como uma nova atração da prestigiada Broadway, a peça ganhou um reconhecimento quase instantâneo, alcançando produções próprias em outras cidades e até em outros países. Com músicas escritas e compostas por Miranda, não demorou para o feito chamar a atenção pela forma como concedia espaço para figuras tradicionalmente marginalizadas, adotando variadas e brilhantes estratégias para contar, segundo as palavras do ator principal, “a História da antiga América sob a ótica da nova América”. Diante desse estonteante panorama, não é de se surpreender que a narrativa antes restrita aos palcos ganhou uma versão filmada, dirigida por Thomas Kail, cujo alcance ampliado faz desse um novo clássico cantado.
Nascido em uma pequena ilha do Caribe, Alexander Hamilton definitivamente não teve uma infância fácil. Órfão desde cedo e vindo de uma família condenada pela miséria, lutou muito para ultrapassar as terríveis condições impostas pela dura realidade ao seu redor, chegando à Nova Iorque com uma pulsante determinação após batalhar durante vários anos. Dessa forma, conseguiu se colocar como um importante membro do exército na luta contra a soberania inglesa, se destacando ao lado do general George Washington (Christopher Jackson), a partir do apoio de parceiros como o militar francês La Fayette (Daveed Diggs, que também incorpora Thomas Jefferson), do espião Hercules Mulligan (Okierete Onaodowan) e de John Laurens (Anthony Ramos). Anos após a Revolução Americana, viria a se tornar o primeiro Secretário do Tesouro dos EUA, marco na vida de um homem que lidou ainda com uma série de turbulências em relação ao seu casamento e aos aliados mais próximos. Temos assim um panorama geral de uma vida bastante movimentada, aqui transformada em uma contagiante epopeia sobre amor, ambição, e, acima de tudo, acerca da importância de jamais se deixar silenciar.
Dedicada a dar protagonismo a quem geralmente tem papéis coadjuvantes, a produção já se destaca pelas escolhas estilísticas que embalam as canções consagradas desde a estreia cinco anos atrás. Além de traduzir magistralmente explicações políticas em passagens de grande dinamismo e rapidez, o grande triunfo da trilha sonora é combinar gêneros relacionados à resistência de setores comumente desvalorizados: mescla elementos do Hip Hop – que teve como berço comunidades formadas por latinos, jamaicanos e negros, tendo atuado na mitigação da violência desses bairros periféricos por meio da expressão artística -, do R&B – associada à cultura afro-americana que carrega em seu vasto ecletismo um reflexo da multiplicidade do povo americano – e do Soul Music – que visa traduzir a “alma” da experiência negra em suas letras. Construindo assim uma assinatura lembrada por sua variada amplitude – e com direito, por exemplo, a divertidas batalhas de rap no Congresso americano – é alcançada a ideia de reconhecer o um lugar de fala de indivíduos colocados no silêncio durante muito tempo.
Seguindo essa mesma lógica de reparação histórica, seria impossível omitir o peso da brilhante decisão de escalar um elenco majoritariamente negro e de artistas com raízes estrangeiras na incorporação de brancos idealizados durante muito tempo em livros escolares. Ao colocar rostos carismáticos como os de David Diggs e Christopher Jackson à frente de figuras como Thomas Jefferson e George Washington (ambos com enérgicas performances), a atração não só testa a manipulativa construção imagética de personalidades como também confere maior dimensão a líderes usualmente retratados com tanto didatismo. Seja através da hipocrisia daquele que retorna da boemia francesa para se colocar ferozmente na corrida pela presidência ou do cansaço do destemido líder que optou por renunciar em um momento de grande urgência, a narrativa se arrisca na desconstrução dessas personas para não desviar o mérito de outros cruciais arquitetos da nação americana.
Fica evidente que a escolha de Hamilton como protagonista se consagra como a grande cereja do bolo, concedendo boa parte dos holofotes a um rosto que nunca recebeu o mesmo reconhecimento que seus contemporâneos. Descendente de porto-riquenhos, Miranda encontra no homem da nota de dez dólares uma ponte para a realização de uma verdadeira ode aos imigrantes – reafirmando a assinatura expressa em “Em um Bairro de Nova York“, musical também de sua autoria que celebra a cultura latina -, tendo no papel a plataforma perfeita para expressar suas vastas capacidades teatrais. É fundamental perceber como o ator equilibra o magnético carisma do personagem central com as falhas que o condenam a períodos de declínio, não se permitindo criar caricaturas de quaisquer tipo. Sendo assim, a fascinação e o orgulho gerado no espectador pela determinação de Alexander é gradativamente substituída pelo receio e pelo arrependimento, sendo angustiante e extremamente humano, observar a ambição que o permitiu ascender ao cargo de secretário e também o afastou das pessoas ao seu redor. É nesse aspecto que se revela outra a importante mensagem: a necessidade de perceber que as conexões estabelecidas em vida são mais primordiais para o nosso legado do que a elevação do próprio ego.
Além de um protagonista complexo, a obra não seria nada sem o majestoso antagonista Aaron Burr, outro que destrói completamente costumeiros maniqueísmos. Magistralmente interpretado por Leslie Odom Jr., o vice-presidente que foi de amigo à rival, ganha um desenvolvimento bastante comovente, munido de algumas canções impactantes – por exemplo, “Wait For It“, que lhe permite justificar com as próprias palavras sua mentalidade predominante. Por conta disso, estabelece com Alexander uma dinâmica que desponta como um aspecto bastante interessante, não sendo difícil perceber as inúmeras semelhanças que compartilham. Afastados por uma diferença crucial, entretanto, persistem em levantar uma barreira, insistindo na separação de indivíduos que, lado a lado, poderiam ter garantido grandes feitos. Tem-se assim um belíssimo lembrete, que assume fundamental importância para a conclusão da peça, de que a igualdade exposta por falsos moralistas como Jefferson persiste mesmo em um mar de diferenças. Devemos impedir que os traços que nos distanciam sejam mais poderosos que aqueles que tecem aproximações, uma fala que assume um simbolismo ainda maior se considerarmos que na história verídica a cor de Aaron Burr era diferente daquela de quem o interpreta.
Seria injusto ignorar a maneira como o drama valoriza a importância de suas personagens femininas, reconhecendo seu papel como mães da sociedade americana. Dividida entre o amor e laços fraternais, é na maravilhosa voz de Renée Elise Goldsberry que são revelados os sacrifícios que muitos inferiorizados estão dispostos a fazer pelos seus semelhantes. Ciente do papel que tem a cumprir, é emocionante ver sua Angélica Schuyler abrir mão da própria felicidade em nome da irmã mais nova. Essa última assume um destaque ainda maior, sendo talvez a personagem que melhor reforça a diferença que aqueles que nos amaram exercem sobre a forma como seremos lembrados. Afetada pelos atritos de seu casamento com Hamilton, ela busca ultrapassar a raiva – perdoando-o em “It’s Quiet Uptown” ao som de sua guardiã pessoal – e se consagra como a principal responsável por garantir ao seu amor um legado positivo. Construindo essas boas memórias por meio do canto, explicita assim na pele da talentosa Phillipa Soo – atriz de descendência chinesa que coroa com suas origens um simbolismo bastante atual – um dos truques mais sagazes da grandiosa atração: mais do que apenas explorar aqueles sobre quem falam, suas canções também dizem muito sobre aqueles que as cantam.
Embora esse recurso possa parecer um pouco óbvio, ele é outra forma inteligente de reforçar a urgência de direcionar a narração para quem nunca teve a oportunidade de exercê-la. Reflexo disso se encontra logo em sua abertura, na qual traços de arrependimento preenchem Burr, o “vilão” da história, mas o primeiro a se engajar na rememoração positiva de seu antigo nêmeses. Descrevendo o sombrio passado de “Alexander Hamilton“, ele encontra em músicas como essa a oportunidade de uma redenção paralela à do próprio protagonista, acrescido de ainda mais camadas ao receber chances de ir além de pré-julgamentos injustamente atribuídos a párias da humanidade.
É necessário destacar também o trabalho da vibrante trupe de dançarinos, cuja coreografia preenche belissimamente o palco, beneficiando-se das múltiplas possibilidades que o ritmo rico da trilha sonora permite, segundo as palavras do coreógrafo Andy Blankenbuehler. Essas qualidades garantem um show que deliciosamente quase nunca se interrompe, enriquecido pela rapidez da alternância das cenas. Tal característica é um dos fatores que equilibra os diversos tons do musical, permitindo a harmonia perfeita entre a comédia, a aventura e o drama. Detalhes esses muito bem transportados para as telas, dada a precisa direção de Thomas Kail, que nos aproxima das impressionantes atuações talvez até mais do que na experiência teatral.
Destinado a homenagear alicerces historicamente ignorados, “Hamilton” é um épico que felizmente não se encontra mais restrito às salas de teatro. Atualmente mais acessível do que em seu lançamento, a produção se consagra ao permitir que múltiplas vozes estejam à frente de narrativas impactantes. Por ser um grandioso exemplo de representação cultural, faz jus ao título de “fenômeno cultural” que recebeu logo após a estreita. Responsável pela construção de figuras que rompem com o injusto maniqueísmo que inunda livros didáticos, a experiência exibe como poucas a maleabilidade na construção de memórias. Independente de sermos movimentados pela inabalável determinação de Alexander Hamilton ou pela cautela de Aaron Burr, o fundamental é perceber que nossas jornadas jamais serão trilhadas isoladamente. Assim, é importante apoiar quem preza pelos laços emocionais partilhados e não mentalidades envelhecidas dedicadas a erguer muros contra pluralidade da espécie humana.