Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 14 de novembro de 2020

Terra e Luz (2017): eficaz conto de sobrevivência neorrealista sobre vampiros

Poucos recursos são transformados em ótima realização de um terror reflexivo e de estética e ambientação marcantes, inspiradas no mito dos vampiros e na natureza brasileira.

*Filme disponível na Mostra MacaBRo de Horror Brasileiro Contemporâneo, evento com exibições online gratuitas através da plataforma de streaming Darkflix entre 28 de outubro a 23 de novembro de 2020.

Num Brasil desolado por criaturas sombrias vampirescas, as poucas pessoas que restam batalham contra a fome e entre si para sobreviver em um bioma desértico. O conceito é simples: os elementos presentes no título de “Terra e Luz” protegem dos predadores sobrenaturais. No entanto, o desespero, a resiliência e os frágeis valores que ainda separam os homens dos outros animais são os testes que o cineasta Renné França propõe a seu protagonista anônimo interpretado por Pedro Otto.

O abre-alas desta produção brasileira de terror é a estética seca e selvagem do cerrado. O tratamento fotográfico limitado pelo baixo orçamento pouco diminui a textura árida, ressaltada pela cor dourada de um eterno pôr do sol e pela lama rachada na pele dos dois homens que introduzem o filme. Ambos seguem sem rumo claro com o único objetivo de encontrar comida e sobreviver aos vampiros representados por efeitos de sombras vivas e escondidos sob capas negras.

A narrativa caminha para o encontro de um sobrevivente traumatizado e a menina Lúcia (Maya dos Anjos), e logo a jornada de resistência toma ares conhecidos por obras contemporâneas de sucesso como “Um Lugar Silencioso“, “Cargo” e “The Walking Dead“. A comparação é válida pelo silêncio da ausência de diálogos (que só é quebrado quando Lúcia aparece na história), pelos dilemas que chegam com a criança e também pela técnica da “noite americana”, que permite simular períodos noturnos como luz de lua cheia em gravações diurnas – efeito abusado pela série referenciada.

No entanto, a força das imagens neorrealistas de “Vidas Secas“, que tanto marcaram a história do cinema brasileiro, se faz mais presente na estética desse projeto que qualquer influência norte-americana. Dessa forma, o sobrenatural das misteriosas criaturas, inequivocamente classificadas pelo roteiro como vampiros, não tem maior importância que o realismo do drama dos personagens à beira da morte por fome. Assim, os dilemas sobre o que ainda nos faz humanos à frente do desespero ganha prioridade no trabalho de Renné França.

O simbolismo dos vampiros como monstros que se alimentam de sangue resiste há décadas para representar figuras que oprimem pessoas à custa de suas vidas. Pode-se falar tanto de conceitos abstratos como luxúria, vaidade e avareza, quanto de ideias como capitalismo, política e religião. De certa maneira, qualquer coisa que só existe ao se alimentar da energia de outra é bem representada por esse mito centenário. Em sua narrativa, o diretor preferiu manter o enigma das criaturas indefinido, mas direcionou sua câmera para tentar responder se o instinto humano carrega a mesma capacidade de seus algozes para cometer atrocidades.

Se por um lado o desenho de som pode irritar pela repetição e a mise-en-scène é limitada pelos planos de câmera fixa, é louvável que um filme autoral de horror de baixíssimo orçamento provoque tantas reflexões. O papel da natureza vai além da ambientação e as questões humanas se desdobram também para a nossa relação com ela, inegavelmente “vampiresca” de certa forma. Em breve momento, Renné França ainda pontua sobre a posição do homem indígena neste jogo.

“Terra e Luz” é curto, simples e eficaz. É preocupado com sua estética e reconhece suas referências. É brasileiro por natureza e universal ao mesmo tempo. Uma ótima obra dramática autoral, com o terror na textura, mas sem a proposta de assustar – pelo menos nada mais que as próprias possíveis conclusões do público a partir de suas reflexões. Afinal, o humano é muito mais próximo dos vampiros do que se aceita reconhecer.

William Sousa
@williamsousa

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