Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Terminal Praia Grande (2019): um projeto desnorteado com elementos que não se falam

"Terminal Praia Grande" tenta combinar estilos diversos em uma história de terror enigmática, que ao fim se revela mais frustrante do que misteriosa.

*Filme disponível na Mostra MacaBRo de Horror Brasileiro Contemporâneo, evento com exibições online gratuitas através da plataforma de streaming Darkflix entre 28 de outubro a 23 de novembro de 2020.

Mesmo os filmes menos convencionais precisam construir uma unidade dramática e estilística. É através dela que os diretores propõem sua visão artística sobre o roteiro, a narrativa apresenta efeitos totais expressivos e os espectadores são convidados para uma experiência sensorial de princípios ordenados. Quando falta equilíbrio nos elementos da linguagem audiovisual, acontece o que aconteceu com “Terminal Praia Grande“, ou seja, um afastamento do público diante de um projeto que mais parece uma sucessão de aleatoriedades.

O ideal desde o início seria se desapegar da sinopse, um conjunto de informações que pode frustrar expectativas por algo mais tradicional. A jornada de Catarina (Áurea Maranhão) é mais abstrata do que parece ser sua simples decisão de preparar uma festa de despedida antes de deixar São Luís. Ao reencontrar Francisco (Rafael Lozano), com quem teve um relacionamento no passado, sua vida é ainda mais afetada ao se aproximar das razões para o desaparecimento do homem. A partir daí, ela se depara com um destino inescapável.

Quem por acaso esperar um roteiro de trama coesa e convencional se surpreenderá já nas primeiras sequências. Catarina acorda com uma forte ressaca, que a deixou fisicamente debilitada e a casa desordenada pelos restos da festa, tendo que arrumar o local e se preparar para ir embora da cidade. Em seguida, ela assiste à gravação de sua dança sensual do dia anterior pelo celular e vai para a rua à noite, quando passa por eventos enigmáticos em um ônibus. Embora a diretora Mavi Simão não busque uma história contada tradicionalmente e invista mais nas sensações, os momentos dramáticos não dialogam entre si: a protagonista passa muito tempo em atitudes triviais (limpar a piscina, tomar banho, alimentar-se, relembrar o que aconteceu…), que geram pouco efeito dramatúrgico; e se envolve em situações irreais à noite, que parecem apenas apelativas e sem impacto no conjunto total da obra.

A ausência de articulação entre cenas naturalistas e outras oníricas fica perceptível nas variações desequilibradas da decupagem. As ações do cotidiano são filmadas com poucos planos, ângulos abertos e enquadramentos estáticos que, em vez de consolidarem alguma ideia sobre a personagem, criam muitos tempos mortos monótonos. Os momentos dignos de um pesadelo são decupados com planos mais fechados e uma atmosfera sombria que, parecem saídos de um filme de horror incompatível com o que havia sido apresentado anteriormente – a cena em um ônibus até consegue isoladamente despertar choque e repulsa, mas não dialoga com as demais; e a cena da refeição de Catarina soa absolutamente gratuita na sua posição na narrativa e na combinação das cores branca e vermelha. Predomina, portanto, a sensação de que dois estilos heterogêneos se chocam ao invés de se complementarem.

Essas escolhas formais sem unidade e equilíbrio também comprometem o envolvimento emocional com a protagonista. Como os diálogos são muito raros e as sequências são criadas a partir de silêncios e de elementos cênicos, as ações da personagem principal são essenciais para dizer quem ela é e como se daria sua evolução dramática. Porém, os comportamentos da mulher carecem de significados mais amplos e indicações sobre sua identidade e rumos de vida. Isso deixa perguntas que enfraquecem o interesse do espectador: para que mostrar passagens cotidianas por tanto tempo (especialmente, tomar banho num banheiro repleto de plantas)? Por que está indo embora da cidade? Por que não desenvolver mais sua bissexualidade? Por que ela tem a impressão de algo a segurar naquele lugar? Quando a narrativa insere símbolos, o efeito continua vago porque a trama não é beneficiada nem a ambientação de terror é potencializada.

Da mesma forma que a história é excessivamente intangível, sem ter no que se apoiar, e a decupagem não segue um princípio definido, a montagem gera mais problemas que soluções. O encadeamento das cenas é feito de tal modo que o contraste não planejado entre cotidiano e eventos misteriosos fica ainda mais visível, criando um descompasso entre esses blocos que poderiam estar em produções diferentes. Além disso, a fragmentação narrativa com transições entre passado e presente indica um recurso aleatório, em que os momentos cronologicamente distintos são encaixados mais como apelos visuais vazios do que como estratégias expressivas. Ao apostar na não linearidade, a cineasta também prejudica a participação de Francisco, que surge num ponto avançado da narrativa sem conseguir criar química para o casal ou uma atmosfera de mistério.

A princípio, “Terminal Praia Grande” poderia ser interpretado como uma obra interessada em desorientar o público no tempo, no espaço e nos acontecimentos. Sendo essa a intenção ou uma possível leitura, ainda assim falta propor chaves de interpretação e assimilação para as imagens construídas. Sem esses aspectos, o filme fica ele próprio desorientado em meio a uma profusão de estímulos sensoriais, trabalhados aleatoriamente com pouco efeito dramático e estilístico. Prova dessa travessia caótica é a tentativa de oferecer uma reviravolta sobrenatural ao final, que é fria e impessoal ao contrário do que o clímax buscava. Assim, a pergunta restante é: todo o percurso desinteressante era para chegar apenas a essa conclusão?

Ygor Pires
@YgorPiresM

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