Criação de Peter Morgan acompanha a Família Real britânica desde a ascensão de Elizabeth II ao trono, e tal qual o símbolo que retrata, a série deslumbra ao mesmo tempo que causa questionamento sobre sua relevância.
*Notas individuais de cada temporada: 10 (primeira), 8 (segunda) e 9 (terceira).
O que a realeza britânica representa para aqueles que estão fora de seu alcance? Em suma, algo supérfluo que desperta curiosidade. Parece absurda a ideia de uma monarquia no século XXI, porque de fato o é. Mas da mesma forma que a Família Real serve como um símbolo para o povo do Reino Unido, “The Crown” é a representação perfeita do falso idealismo de uma instituição arcaica.
A primeira temporada da série de Peter Morgan estreou em 2016 na Netflix, sendo a produção mais cara do streaming até hoje. Com a quarta temporada estreando em 15 de novembro, e mais duas temporadas (as últimas) confirmadas, espectadores brincam que a série é a causa do cancelamento de várias outras produções menores pela Netflix, e já podemos traçar o primeiro paralelo com a realeza retratada aqui. “The Crown” não possui relevância significativa, não aborda assuntos importantes que já não tenham sido cobertos pela mídia, e de fato seu orçamento poderia estar sendo usado para obras mais significativas para a sociedade. E ainda assim, a série existe, e quer saber? Que bom.
A Coroa deve prevalecer. Esta é a mensagem principal da primeira temporada, que traz a rainha Elizabeth II (Claire Foy) de início ainda apenas como a filha do soberano George VI (Jared Harris), e que assume o posto do pai inesperadamente após sua morte. Elizabeth sabia que seria a próxima a subir ao trono, mas nem sempre foi assim. Seu pai apenas se tornou rei porque seu irmão mais velho abdicou do cargo, mudando toda a linha de sucessão. Edward VIII (Alex Jennings) deixou a Coroa porque queria casar com o amor de sua vida, uma mulher divorciada, algo que não lhe era permitido como Governador Supremo da Igreja Anglicana. Escolhendo o amor, ele colocou seu irmão em um cargo que prejudicaria sua saúde irrevogavelmente, e permitiria a ascensão da soberana que reina até hoje.
O que Elizabeth precisa aprender no início de seu reinado é esta mesma mensagem: a Coroa deve prevalecer. Ela está acima de seus sentimentos, está acima de seu marido, o príncipe Philip (Matt Smith), está acima dos desejos de sua irmã Margaret (Vanessa Kirby), e como ela eventualmente descobre, está acima de seus filhos. Não bastasse, a Coroa representa apenas um símbolo, tendo pouca relevância em questões do governo. Assim, quando a jovem Rainha é colocada frente a frente com problemas de Estado, ela nada deve fazer além de oferecer apoio àqueles que governam. Parece um trabalho impossível para um ser humano, e um diálogo que acontece entre Elizabeth e a rainha Mary (Eileen Atkins) ilustra bem isso:
“Não fazer nada é o trabalho mais difícil de todos. E vai consumir cada grama de energia que você tem. Ser imparcial não é natural, não é humano. As pessoas sempre vão querer que você sorria, concorde ou franza a testa. E no minuto que você fizer isso, você terá declarado uma posição. Um ponto de vista. E isso é a única coisa como soberano que você não tem o direito de fazer. Quanto menos você fizer, menos você disser ou concordar ou sorrir…”
“Ou pensar, sentir, respirar, existir?”
“… melhor”.
A primeira temporada tem o arco definido pela formação de Elizabeth como soberana. Um dos principais elementos dessa fase é a relação com o primeiro-ministro Winston Churchill (John Lithgow), que viria ajudá-la a entender pormenores políticos, e viria também a admirar a notável rainha que o destino presenteara ao povo da Inglaterra. A atuação de Lithgow, que lhe rendeu um Emmy, é um dos pontos altos da série, e o mesmo pode ser dito sobre Claire Foy. Como interpretar alguém tão marcante como a rainha Elizabeth II, fazendo-lhe justiça e ainda assim assumindo um personagem? A atriz certamente encontrou o equilíbrio, e foi vencedora do Globo de Ouro por isso.
Os dois primeiros episódios da série foram dirigidos por Stephen Daldry (“O Leitor”), e Hyde Park Corner, que mostra os eventos da morte do Rei George VI é um espetáculo de narrativa à parte. No entanto, o diferencial da produção está sem dúvidas no roteiro de Peter Morgan. Previamente responsável por “A Rainha” (2006) e a peça “The Audience”, creditada como base para “The Crown”, Morgan tem o domínio da História da Família Real o suficiente para escolher o que absorver da realidade, e o que criar para efeito dramático. É verdade que a série por vezes pode parecer uma grande novela, em que intrigas familiares são passadas como problemas de alto interesse, mas é porque de fato são. Os conflitos da realeza foram e são, até hoje, documentados como grandes acontecimentos na sociedade britânica, e por vezes até no mundo. Eles funcionam como distrações, como alentos e, dentro da série, servem como inspirações quando necessário. Tudo pela escrita de Peter Morgan, pelas atuações marcantes, e pela qualidade de produção que justifica (e merece) o alto orçamento.
A segunda temporada chegou em 2017, com menos acontecimentos históricos e mais intrigas familiares. Grande parte dos episódios é dedicado à crise no casamento de Elizabeth e Philip, que acabam sendo pouco interessantes, mas a temporada alavanca em sua reta final com o retorno de Stephen Daldry, que lembra em claro e bom som o porquê de “The Crown” existir. Dear Mrs. Kennedy é um dos melhores episódios de toda a série, mostrando o encontro da soberana com John e Jackie Kennedy. O encontro das duas mulheres faz a rainha se sentir obsoleta e pouco interessante, até ela perceber a realidade da vida de Jackie. O final do episódio retratando o assassinato do presidente estadunidense é avassalador.
Logo depois vem o episódio Paterfamilias, capaz de despertar uma baita reação negativa ao príncipe Philip (se não odiassem a figura até então, neste momento é inevitável). Daldry e Morgan fazem um paralelo entre a adolescência conturbada de Philip com a infância de Charles. O primeiro foi obrigado a ir para um internato que prometia “torná-lo um homem”, o que quer que isso signifique, e o segundo é forçado à mesma experiência pelo seu pai para que ele possa “virar um homem” à força. Charles é uma criança sensível, que tinha esperanças de poder ir para uma escola de cavalheiros, mas seu pai, rejeitando sua sensitividade, o força ao mesmo trauma que teve de passar quando jovem. É um episódio revoltante e emocionante.
A segunda temporada também explora mais do enigma que é Margaret. A possibilidade de felicidade no amor foi-lhe rejeitada na primeira temporada, e a princesa encontra (ou pensa encontrar) uma nova chance no fotógrafo Tony Armstrong-Jones (Matthew Goode). Suas cenas trazem uma inesperada sensualidade, ao mesmo tempo que refletem a urgência de uma alma desesperada em achar o amor. Margaret e Elizabeth são opostos interessantes de se explorar, pois enquanto uma detém o charme e atrai a admiração do povo britânico, a outra representa o dever da Coroa, aquilo que o povo precisa, mas não necessariamente quer. Agora com pouco mais de uma década de reinado, Elizabeth é um símbolo estável de liderança, e, com mais e mais anos acumulados, a soberana se petrificaria em seu dever.
Claire Foy, Matt Smith, Vanessa Kirby e outros principais atores das duas primeiras temporadas deixariam seus papéis para dar lugar a um novo elenco. Pensada desta forma desde o início, a série propõe três grupos de elenco diferentes para dar vida às figuras retratadas em momentos diferentes. Em 2019, a terceira temporada estreou com Olivia Colman como a rainha, agora em seus 50 anos, em um momento estável de seu casamento com Philip (Tobias Menzies), mãe de Charles (Josh O’Connor) e Anne (Erin Doherty), agora figuras centrais na narrativa.
A verdade é que com a ascensão de Charles na trama, todos esperamos a introdução de Diana, mas por enquanto o que encontramos é o reflexo da criação de pais emocionalmente distantes, e o que a expectativa de uma possível sucessão faz com alguém tão vulnerável. Em um diálogo entre mãe e filho, ou melhor, entre rainha e seu sucessor, Elizabeth relembra as palavras da rainha Mary, dizendo a Charles que um soberano não deve declarar nenhuma posição, nem ter uma voz, no que o príncipe responde o mesmo questionamento que sua mãe uma vez tivera: “quanto menos pensar, sentir, respirar, existir?”. Não é uma escolha, é um dever, a Coroa prevalece.
A princesa Margaret, agora vivida por Helena Bonham Carter, é um dos pontos altos da temporada. A atriz faz um excelente trabalho em trazer o enigma e a instabilidade de Margaret às telas. Alguém tão envolvente e interessante para os olhos de todo o mundo, mas que é vista como incapaz pela própria família, e agora só recebe o desdém de seu marido. A rivalidade entre a princesa e a rainha agora funciona como uma guerra fria, com uma acreditando ser melhor que a outra através de suas superfícies comportadas, mas no fim, uma não existe sem a outra, e é em uma cena como a do último episódio da temporada, em que Elizabeth vai visitar a irmã que está de cama, que sentimos o poder de dois ícones da atuação, junto ao roteiro sempre brilhante de Peter Morgan.
Nesta terceira temporada, o início é mais forte que o fim, com o episódio Aberfan sendo um verdadeiro soco no estômago, e Bubbikins servindo como uma tentativa de apresentar Philip de maneira mais branda. Os quatro primeiros episódios são dirigidos por Benjamin Caron, que já havia sido parte das temporadas anteriores, e aqui apresenta o melhor trabalho. Este terceiro ano da série parece mais estável, sem grandes ocorrências, porque acaba sendo a preparação para o drama final que Morgan pretende apresentar. A quarta temporada trará Diana, figura que será proeminente ainda nas duas temporadas finais, e que certamente oferecerá o fechamento que “The Crown” merece.
Por mais supérflua que seja, a monarquia britânica é o maior exemplo de tal instituição do mundo, e a série que a retrata o faz com a mais alta qualidade. O trabalho de todos envolvidos é menos contar a história desta família, e mais mostrar a importância do símbolo da Coroa. Precisamos dela? Talvez não. Mas a admiração que sentimos ao vê-la é real. E assim também é com “The Crown”.