Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 06 de novembro de 2020

Transtorno Explosivo (2019): sensível, selvagem e com uma incrível protagonista

Drama enérgico sobre uma violenta criança desajustada com problemas para controlar sua raiva, que apresenta sua rara personagem com dinamismo e autoralidade.

Atenção: este filme é um novo lançamento nos cinemas que já estão reabertos no Brasil. O Rapadura recomenda que todos consultem os protocolos de prevenção contra o coronavírus de seus cinemas favoritos para garantir sua segurança.

Em contraste ao corpo infantil da pequena Benni (Helena Zengel) existe uma alma feroz e violenta, que não consegue controlar sua raiva explosiva diante de sua carência afetiva. Prestes a completar dez anos de idade, a traumatizada alemã já passou por diversos lares e cuidados sem que ninguém conseguisse ajudá-la de fato. Com poucas opções restantes nas mãos da assistência social, “Transtorno Explosivo” acompanha um pedaço da vida desta menina-problema, convidando o público a entendê-la e as pessoas ao seu redor.

A produção comandada por Nora Fingscheidt não seria a mesma sem a atriz prodígio Helena Zengel. A maneira que a menina equilibra uma ternura pueril com a emoção descontrolada ainda deixa espaço para refletir força, fragilidade e astúcia. Mesmo diante de bons atores adultos, é ela quem entrega a personagem mais complexa, com energia tão diferente de crianças comuns, mas também fincada em sentimentos dignos de empatia. Se ela não fosse capaz de entregar uma figura tão amável quanto odiável, o resultado do filme não teria o mesmo impacto.

Crianças problemáticas são sempre um tipo de papel difícil de funcionar no protagonismo de uma obra. Se ela não conquista o coração do espectador ao mesmo tempo que provoca pena ou revolta, a história é comprometida. É o que acontece por exemplo em “Tão Forte e Tão Perto” de Stephen Daldry, que apresenta uma criança distante e traumatizada, mas que não cativa. “Star Wars: Episódio I – A Ameaça Fantasma” foi polemizado pela performance de Jake Lloyd como Anakin Skywalker. No outro lado do espectro recente estão Quvenzhané Wallis de “Indomável Sonhadora” e Jacob Tremblay em “O Quarto de Jack” – e se ambos receberam indicações ao Oscar, Helena Zengel também merece a sua.

A câmera de Fingscheidt reflete a energia da protagonista no dinamismo da montagem e na paleta de cores – o rosa predominante ajuda a construir o contraste entre inocência e maldade. Tais aspectos associados às inspiradas transições e suas texturas ora doces e amorosas, ora cortantes e pungentes, marcam o domínio autoral da diretora, que já teria reconhecimento simplesmente pela direção de atores. O elenco coadjuvante também compartilha dimensões profundas do drama, tendo espaço para aprofundar personagens orbitais, como o acompanhante especialista Micha (Albrecht Schuch), a assistente social Frau Bafané (Gabriela Maria Schmeide) e a mãe de Benni (Lisa Hagmeister). A frágil relação entre esses três e a menina reflete a visão do público, que participa do estudo destes personagens e torce por eles à medida que o roteiro cria e desfaz obstáculos.

Como pano de fundo para a engrenagem da história, a eficiência do serviço social alemão e a qualidade das instituições disponíveis para ajudar pessoas como Benni é impressionante aos olhos de países como o Brasil. Segundo o filme, o pior destino possível para a menina ainda é um tratamento sob a tutela do Estado, só que em outro país muito longe da familiar Alemanha. Ainda assim, entre essas e outras diferenças culturais, “Transtorno Explosivo” se apoia em sentimentos universais, como aceitação, responsabilidade e o amor materno insubstituível, para criar a identificação necessária com os espectadores.

Apesar de funcionar como ótimo estudo de personagens e como comentário para os desafios do relativamente avançado sistema pedagógico alemão, o roteiro tem certa dificuldade em convergir a jornada de Benni a um desfecho, especialmente no ato final e em sua montagem. Apesar disso, ele em nada compromete a experiência de quem está investido nos personagens e em como eles lidarão com os problemas.

Recheado de emoções distintas, este premiado longa trata seriamente de uma perigosa e violenta disfunção mental, que afeta tanto indivíduos quanto a sociedade que precisa acolhê-los. Como obra cinematográfica, ele traz uma energia e autoralidade semelhante à de “Mommy” de Xavier Dolan, que também apresenta um protagonista com dificuldades para controlar a raiva e a relação com sua mãe. Ademais, também presenteia o público com uma impactante performance infantil por Helena Zengel como raramente visto no cinema.

William Sousa
@williamsousa

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