A Vermelho Profundo e Gabriel Martins criam uma obra de terror assustadoramente real por conta dos horrores da escravidão no Brasil de ontem e de hoje.
*Filme disponível na Mostra MacaBRo de Horror Brasileiro Contemporâneo, evento com exibições online gratuitas através da plataforma de streaming Darkflix entre 28 de outubro a 23 de novembro de 2020.
Por mais que indivíduos mesquinhos reneguem sua importância, os lugares de fala são definitivamente vitais para narrativas sobre grupos sociais marginalizados e temas históricos delicados. Podemos notar isso a partir de “O Nó do Diabo“, criado pela produtora paraibana Vermelho Profundo e por realizadores como Gabriel Martins (“No Coração do Mundo“). Trata-se de um conjunto de artistas capazes de contar cinco contos de terror sobre a crueldade da escravidão, passando pelo século XIX numa fazenda canavieira até os anos mais recentes de um Brasil que ainda sente os efeitos daqueles horrores.
Em cada um dos cinco capítulos, é possível sentir a diferença entre os trabalhos feitos pelos diferentes diretores. Vinculados à Vermelho Profundo também estão Ramon Porto Mota (“A Noite Amarela“), Ian Abé e Jhesus Tribuzi. Esse projeto marca uma sensibilidade ímpar ao definir o terror como gênero de um filme sobre a escravidão, considerando-se a violência, as humilhações e o racismo direcionados à população negra em distintos períodos históricos. São muitos os detalhes que demonstram essa escolha: o proprietário de terras como símbolo de opressão, chamado Senhor Vieira; o engenho no Nordeste como lugar de memória e representação dos males dos escravismo; e os traços de continuidade entre passado e presente com inúmeros fatos atuais sintonizados às brutalidades já ocorridas.
Contudo, os cineastas não seguem uma ordem cronológica tradicional e preferem uma narrativa que recua no tempo. O primeiro conto se passa em 2018 e acompanha um “leão de chácara” responsável por impedir invasões à propriedade de seu patrão, embora o local esteja desocupado. Nesse bloco, o choque vem da intolerância à população de baixa renda nas falas de Senhor Viera e dos discursos em um programa de rádio (todos evocativas do moralismo vazio e sectário do país). Além disso, a violência do próprio funcionário escancara o terror por intermédio do subgênero das tramas de psicopatas, devido às formas como ele confronta gratuitamente uma área periférica e assassina hediondamente suas vítimas.
O conto seguinte recua para 1987 para mostrar a busca por emprego do casal Joana e Sebastião na fazenda do mesmo Senhor Vieira. Dessa vez, o estilo é outro, assemelhando-se à estrutura de casa mal-assombrada por espíritos de pessoas tragicamente mortas. Entretanto, a narrativa modifica o subgênero para fazer com que essas assombrações sejam percebidas como as figuras de exploração e crueldade do passado colonial, como o dono do lugar e os jagunços que se apoiavam na escravidão de séculos atrás. Em uma linha complementar, a propriedade libera manifestações terríveis de memórias e acontecimentos daquele cenário: instrumentos de tortura escondidos, aparições chocantes de pessoas escravizadas e violentadas e eventos sobrenaturais direcionados às vidas dos protagonistas.
No terceiro segmento, o ano é 1921 quando as irmãs Maria e Cissa ainda são tratadas como escravizadas – apesar de a Lei Áurea já ter abolido esse regime de trabalho em 1888 -, nas terras do Senhor Vieira. Elas ficam acorrentadas em algo semelhante a uma senzala, são chicoteadas como forma de punição, são tratadas como mercadorias (inclusive, como objetos sexuais) e sofrem castigos nas tentativas de fuga. Agora, os realizadores adotam uma abordagem de história de vingança, que também se enquadra no gênero terror por continuar investindo em cenas violentas (uma tendência desde o início). Porém, o estilo igualmente dialoga com a base histórica de estratégias de resistência de escravizados e seus descendentes, trazendo a revolta como elemento de confrontação a um sistema opressor.
As diferenças começam a se intensificar na abordagem no penúltimo bloco, transcorrido em 1871 quando a escravidão ainda existia oficialmente no Brasil monárquico. Isso porque a trama não se associa a algum subgênero mais evidente do terror, pois o protagonista da vez foge do local onde era escravizado em busca de um quilombo para viver livremente. Tal proposta temática flerta com um road movie de traços místicos, no qual o personagem se desloca até o refúgio almejado sentindo influências transcendentais de indivíduos e de culturas que resistem para sobreviver. Aqui, o horror resulta das marcas da violência encontradas pelo caminho, tanto os vestígios de morte (caveiras, sangue e cenário desolador) quanto os tormentos psicológicos dos ferimentos sofridos e das tensões de uma perseguição.
O terror volta a ser desenvolvido dentro de alguma convenção de gênero no último capítulo, que se passa em 1818 quando cinco pessoas escravizadas tentam se proteger de uma caçada a elas. Após o quilombo onde estavam ter sido atacado, eles fogem em direção a um forte para se defenderem de novas investidas de jagunços. Em um duplo sentido, estamos diante das características de obras de zumbi: os antagonistas se comportam como hordas dessas criaturas, bestializados pela maquiagem e pelos ruídos emitidos enquanto se movimentam; os protagonistas também se relacionam com esse estilo específico ao conectar o ressurgimento dos mortos à influência dos ancestrais, que marca os descendentes e dissemina tradições culturais por muitas gerações (a cultura local, os saberes dos anciãos, um idioma próprio e uma compreensão peculiar da natureza).
Embora os contos tenham especificidades de abordagens e questões temáticas, há aspectos em comum que possibilitam a criação de uma atmosfera de horror permanente. Além da simbologia de um mesmo vilão para diferentes épocas, as escolhas formais acentuam como as práticas escravocratas e seus desdobramentos para a sociedade brasileira despertam medo, angústia e sofrimento: principalmente, a iluminação definida pelo contraste entre luzes e sombras e o desenho sonoro, com ruídos diegéticos e uma trilha sonora anunciadores de uma tragédia iminente. Cada elemento reunido demonstra como a narrativa vai atrás das origens do racismo, das desigualdades sociais e da brutalidade infligidos à população negra e de baixa renda do Brasil.
Transcorridos os contos de “O Nó do Diabo”, podemos perceber a multiplicidade de possibilidades de um filme de temática histórica, não se restringindo apenas aos dramas de época e às biografias. É possível que o cinema se aproprie de eventos históricos e os represente com uma abordagem de terror, afinal é o gênero que mais comunica os horrores a que escravizados e descendentes estão submetidos. Nesse sentido, faz toda a diferença que a obra seja produzida por figuras periféricas em uma sociedade que tanto exclui, sejam cineastas negros, seja uma produtora independente fora do eixo Rio-São Paulo. É assim que os lugares de fala trazem um olhar decolonizado de combate a narrativas hegemônicas e segregadoras, algo poderosamente representado pelo último plano da produção.