Realização de Rodrigo Aragão, este horror brasileiro pratica cinema de alto nível para entregar um filme trash costurando lendas do folclore.
*Filme disponível na Mostra MacaBRo de Horror Brasileiro Contemporâneo, evento com exibições online gratuitas através da plataforma de streaming Darkflix entre 28 de outubro a 23 de novembro de 2020.
Diz a lenda que os manuscritos perdidos de São Cipriano conferem grandes poderes a quem os possuir e proclamar suas páginas. E a um grande preço. Este é o misterioso mote central de “A Mata Negra“, terror brasileiro ambientado entre raízes, lama, criaturas demoníacas e almas perdidas de uma pequena comunidade no interior de uma floresta. Misturando um gênero reconhecido por produções norte-americanas com inspirações do folclore brasileiro, o diretor capixaba Rodrigo Aragão desenha uma trama impecável em meio à rusticidade de um filme trash.
A protagonista é Clara (Carol Aragão), uma inocente jovem cuidada pelo sábio “painho” (Marcus Konká) e que precisa encarar precocemente as responsabilidades e os perigos de seu pequeno mundo. A alegria de se apaixonar pela primeira vez é estragada por malfeitores e pela importunação de crianças e do grupo religioso liderado por Francisco das Graças (Jackson Antunes). No entanto, seu destino é verdadeiramente ameaçado quando a garota de bom coração cruza com um moribundo que lhe entrega ouro e um poderoso livro em troca de ajuda para salvar-lhe a alma.
Considerando a dificuldade de gravar numa floresta, o diretor é inventivo nas posições e nos movimentos de câmera, o que leva à inevitável comparação com “Uma Noite Alucinante – A Morte do Demônio” de Sam Raimi, inovadora obra de baixo custo de 1981. Sua trama tem cheiro e gosto tupiniquim, mas no coração de ambas as produções também há a evocação de entidades malignas após a leitura de um livro amaldiçoado. De acordo com o mito, o livro de São Cipriano carrega rituais ocultistas agora em mãos da oprimida Clara, que tentará de tudo para reverter a miséria de sua vida e ajudar quem for preciso no caminho.
Por trás da estética de “filme B” e entre ótimas e péssimas atuações do elenco misto, estão dois raros trunfos na filmografia brasileira de terror: talentosos efeitos especiais e um roteiro excelente. Se por um lado fãs hardcore do horror podem celebrar as criaturas e o gore de Rodrigo Aragão inspirados pelo folclore nacional, o fenomenal texto possui uma estrutura incomum para um gênero tão subestimado. Além das páginas manchadas de sangue, a história oferece um cuidadoso conjunto de armações que se pagam nas diversas pequenas viradas da trama. É quando elementos aparentemente insignificantes são introduzidos sem alarde, mas depois ganham maior valor em sequências posteriores. Além disso, o que no início parecia um simples conto ganha a grandeza de um universo próprio ao final.
Fora Jackson Antunes, que proporciona uma das cenas mais desatinadas do filme, a jornada de Clara se cruza com a inspirada participação de Francisco Gaspar como o desgraçado José. O pobre homem que precisa cuidar da mãe inválida, da cruel esposa grávida Maria (Clarissa Pinheiro) e de suas queridas galinhas também oferece a comicidade necessária para equilibrar o clima sombrio. O cineasta então aproveita a desculpa para executar sua versão da bizarra lenda do Diabinho da Garrafa.
Não importa a intenção da protagonista, seus rituais acabam a levando por muitos caminhos inesperados. Apesar da ótima estrutura, dos planos, transições e efeitos de gente grande, a montagem desconfia da atenção do público e insere flashbacks desnecessários para explicar melhor algumas das viradas da história. À medida que a produção se aproxima do fim, a estética trash se amplifica com seu horror saciante.
Dentro de um só filme, “A Mata Negra” segue as etapas de se levar a sério, convencer o público disso e então o preparar para curtir tanto o horror que assusta, quanto o horror que faz rir. Além disso, ele ainda aproveita a oportunidade para expandir o rico e sombrio universo folclórico brasileiro. Tudo isso sem abrir mão de boas técnicas cinematográficas. Assim, este ousado projeto de Rodrigo Aragão é uma das melhores obras nacionais de terror, digna de constar entre as grandes do cinema mundial.