Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 31 de outubro de 2020

Spree (2020): sátira desenfreada contra a cultura dos influenciadores digitais

Estrelado por Joe Keery, este horror do tipo found footage traça uma crítica divertida e mordaz ao fenômeno da supervalorização das personalidades na rede.

Talvez ainda seja cedo demais para fazer uma crítica objetiva à cultura dos influenciadores das redes sociais. É um fenômeno relativamente novo na comunicação em massa para ser avaliado com o devido afastamento. No entanto, o impulso é forte para condenar a caça sem regras por seguidores, o conteúdo vazio e apelativo de muitos produtores e a acefalia dos seus consumidores. Nasce então “Spree“, um filme de terror estilo live footage dirigido por Eugene Kotlyarenko, com produção executiva do rapper Drake e estrelado por Joe Keery.

Joe é Kurt, um influenciador digital fracassado, porém, incansável na busca por fãs. Seu passado é apresentado como forma de introdução pessoal do próprio personagem. Afinal, a característica mais marcante do filme é sua montagem na forma de “live” editada. Kurt fala direto com o público do filme como se fosse sua própria audiência. Na prática, as imagens não são construídas somente com seu material. Há vídeos de outros personagens e situações, mas o que há em comum é o fato de todas as câmeras utilizadas serem diegéticas. Ou seja, fazem parte da própria narrativa, o que tecnicamente a faz ser incluída no subgênero found footage.

A motivação de Kurt é simples: ele precisa de seguidores para se validar como pessoa. Não existe indicador mais cruel de existência do que seu número de amigos nas redes sociais e a produção detona este conceito com sua crítica. Para começar, o personagem de Joe Keery é um psicopata. Sabemos isso por dicas de roteiro, pois Kurt não reage emocionalmente como uma pessoa normal. No entanto, ele também é meio pateta e inocente, quase amável. Isso permite que o público acompanhe sua matança sem odiá-lo. Além disso, o roteiro faz o favor de apresentar pessoas horríveis como as primeiras vítimas. Assim, de maneira moralista ao extremo, pode-se torcer para que Kurt alcance seus objetivos. Eventualmente, a obra introduz uma personagem mais identificável, a comediante em ascensão Jessie Adams (Sasheer Zamata). A partir daí, o protagonista pode cruzar certas linhas e assumir o papel de vilão sem risco de perder o público.

O nome “Spree” é referência ao serviço de motorista por aplicativo em que o rapaz trabalha e prospecta vítimas, mas também remete à expressão em inglês “killing spree“, que significa matança – um prenúncio do teor da obra a partir do seu título. No entanto, o objetivo central não é brincar com as variadas mortes, como num slasher de serial killer. É a crítica social, a decisão estética de reproduzir as gravações dos próprios personagens e de colocar os espectadores no papel de seguidores de suas transmissões ao vivo. A montagem combina vídeos de diversas origens para criar uma narrativa mais interessante. Assim, o diretor constrói um suspense adequado e organiza as informações para criar tensão e curiosidade. Se por um lado às vezes há demasiadas coisas acontecendo simultaneamente na tela (o que torna difícil saber para onde olhar), por outro é como tal conteúdo geralmente é consumido.

Certa inocência e vulnerabilidade projetada por Joe em seu personagem possui a mesma característica empática que seu papel mais conhecido até então, o Steve da série “Stranger Things“. Tal atributo sustenta Kurt como protagonista, apesar de psicopata, além de exemplificar o ótimo trabalho de Keery aqui. O tom claro de sátira e leveza também faz contraste com outro longa de mesma temática, “O Abutre“. Esta obra de 2014 traz Jake Gyllenhaal como um psicopata aspirante a jornalista que cruza limites por um furo de reportagem, assim como Kurt para conseguir apreciadores. Entretanto, apesar de possuírem a mesma natureza crítica e semelhanças entre seus protagonistas, seus estilos cinematográficos são diferentes.

Os questionamentos vão além dos influenciadores, representados por pessoas fúteis e egoístas. Através de chats que percorrem a tela, a produção também retrata os fãs, também vazios e carregados de ódio. Há uma piada recorrente até com brasileiros, pelo hábito de chamar gringos famosos para virem ao Brasil. É uma forma generalista de tratar os diversos tipos de pessoas que habitam as redes sociais, mas há de se relevar, pois o exagero está na raiz desse gênero. É uma representação distorcida de pessoas e da realidade para construir a sátira. Atrapalha um pouco que o formato visual escolhido seja utilizado com mais frequência para dar aspectos realistas, como documentários. Porém, essa mistura incomum de estilo e conteúdo é o que “Spree” traz de mais interessante.

William Sousa
@williamsousa

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