Disponível no catálogo da Netflix, “Verônica – Jogo Sobrenatural” é um terror espanhol de 2017 dirigido por Paco Plaza e indicado a sete Prêmios Goya, a mais importante premiação de cinema do país ibérico. Ele acompanha Verónica (Sandra Escacena), sobrecarregada de tarefas domésticas: cuida de seus três irmãos mais novos, as gêmeas Irene e Lucia e o caçula Antoñito; de manhã cedo, dá banho nos irmãos, prepara o café os leva para a escola; à tarde, os traz de volta e serve o almoço. Tudo isso porque sua mãe trabalha horas a fio num restaurante e conta com a filha mais velha para cuidar da casa. Sem tempo para viver uma vida adolescente “normal”, essa é sua rotina nos subúrbios de Madri.

A jovem espanhola estuda numa escola católica administrada por freiras e assina revistas especializadas em ocultismo. Numa tentativa de aplicar seus conhecimentos e invocar o espírito do pai falecido, ela compra um tabuleiro ouija e o leva para o colégio. Seu plano é aproveitar um momento de distração das freiras, que acompanharão um eclipse solar com os alunos neste dia, para então realizar uma mini sessão espírita com duas amigas e contatar o pai. No auge do eclipse, as três colegas fazem contato com uma entidade, mas algo dá errado e Verónica perde a consciência.

Os momentos posteriores ao evento imprudente desenrolam a trama sobrenatural. A protagonista acorda na enfermaria após o desmaio. Questionada pela enfermeira, ela relata que ainda não menstruou. Apesar do tema sexualidade ser comum em produções de terror, aqui ele é secundário. Pode-se dizer que a personagem rechaça a maturidade, pois com ela chega a fase adulta. Seu principal objetivo é recuperar a normalidade de sua vida juvenil.

A ausência emotiva dos pais é uma das formas de rejeição que atinge a protagonista. Ainda que implore, não consegue atenção da mãe. A adolescente sonha com o corpo do pai nu em seu quarto e mãos negras atravessando o colchão para atacá-la, sugerindo um histórico reprimido de abuso sexual. Marcas de dedos e mordidas aparecem na sua pele. A perturbadora tentativa de invocação igualmente a afastou das amigas, que passam a evitá-la.

Assim como nos livros da Bíblia, nas histórias dos irmãos Grimm e em filmes como “A Bruxa” (2015), o projeto de Paco Plaza se posiciona como um conto, baseando-se nos relatórios policiais de uma tragédia ocorrida na Espanha no início dos anos 1990. Considerando a função dos contos de fadas, tal estilo permite exercitar formas de lidar com medos e ansiedades não resolvidos no mundo real de crianças e adolescentes. Dessa forma, evocar histórias passadas é quase um convite para não analisá-las superficialmente e, assim, buscar camadas de interpretação e significados.

O clima de desgraça e danação então acomete a protagonista, que começa a ter visões de um ser humanoide que quer atacar Irene, Lucia e Antoñito. Neste ponto, a narrativa se torna claramente ambígua. Apesar de acompanharmos sua luta contra o mal invocado, um olhar cético acusaria a adolescente de ser a própria agente do terror. Todos os eventos sobrenaturais podem ser explicados por sua falta de consciência. As marcas no corpo da garota estão em ângulos e posições facilmente autoinfligíveis. Suas amigas justificam que não a chamam mais para sair porque ela tem que cuidar dos irmãos, que logo são obstáculos na sua vida. O rancor inconsciente é capaz de fazê-la deixar a torneira de água fervente aberta para queimar o caçula e de atacar as gêmeas enquanto dormem.

Assim, fica a insinuação que as visões paranormais não são nada mais que sintomas psicóticos agravados pelo excesso de responsabilidades domésticas. Pela televisão da sala, escutamos um grudento jingle de comercial dos anos 1990 que canta “Centella me dá tempo para desfrutar” (alusão a uma marca de produto de limpeza doméstica que oferece “tempo para viver”). Ali também vemos uma cena do filme de terror espanhol “Os Meninos” (1976), sobre um casal que precisa matar crianças hostis para escapar de uma ilha. Verônica sonha que os irmãos devoram seu corpo como pequenos canibais. Também em pesadelo, a mãe força a menarca da filha aos gritos, pois “precisa que cresça”. A silhueta do ser humanoide aterrorizante é como a de uma mulher adulta.

Ao acordar do sonho menstruada, o filme pontua a transformação da protagonista pela estampa de um lobo na camisa que veste, referência ao símbolo da licantropia como metamorfose monstruosa. A animalização como figura de linguagem visual é elemento presente: Verónica é como o lobo de sua camisa, que também aparece num dos quadros pintados de sua casa.

O pavor de Verónica de ser arrastada para um mundo adulto sem tempo para viver é o mesmo que se apossa de Thomasin de “A Bruxa”, por exemplo. Assim, os dois filmes exercem a função do horror como forma de trabalhar ansiedades de adolescentes sobre encontrar seus lugares na sociedade. E a perspectiva de futuro para as suas protagonistas, porém, não é otimista. Os filmes afundam Thomasin e Verónica num mundo sem esperanças que não as escuta e restringem suas opções de fuga e resistência a cada nova cena.

Na Madri de Verónica, a conclusão acontece no auge das tentativas da garota para proteger os irmãos do sobrenatural. A história então abandona a ambiguidade sobre a natureza da ameaça com o desfecho do arco da protagonista. Ao renegar a ambivalência construída ao longo de “Verônica – Jogo Sobrenatural”, seus realizadores restringem leituras alternativas, que por sua vez são possíveis em filmes semelhantes. No entanto, preferir a construção de um clima de terror arrepiante em detrimento de sustos artificiais e permitir a negação de fenômenos sobrenaturais, fundamentando as histórias no domínio da psicologia humana, faz com que esta obra se destaque como um ótimo exemplar do cinema de horror contemporâneo.