Filme de Peter Strickland se aproveita das convenções do horror italiano e de seu próprio estilo para criar uma obra estranha, com humor sombrio e uma estética singular.
O consumo material tem a capacidade de gerar no ser humano euforia e gratificação, ainda que sejam temporárias. E quando se alia à propaganda, uma das formas mais conhecidas de incentivo ao consumo desenfreado, é justamente usando um apelo sedutor, por vezes quase erótico, para convencer alguém de que o valor dela pode ser determinado a partir de uma peça de roupa que ressalta as curvas, por exemplo. Ao mesmo tempo que o consumismo vende uma imagem de sucesso, ele funciona como pano de fundo para contos que parecem ter saído de um livro de horror, como é o caso de “Vestido Maldito”, filme do cineasta e roteirista Peter Strickland lançado em 2018 e que entrou para o catálogo do Amazon Prime Video.
“Uma provocação. Para o que mais se deve vestir?”, diz a vendedora Miss Luckmoore (Fatma Mohamed) à Sheila (Marianne Jean-Baptiste) ao tentar vender-lhe um vestido vermelho que, mal sabia Sheila, era completamente homicida. É com essa premissa que “Vestido Maldito” fala sobre muito mais do que aparenta. Uma peça de roupa amaldiçoada, que causa fissuras no corpo de quem o usa e tenta assassinar todos que entram em contato com ele, é só um dos muitos elementos que o longa se utiliza para mostrar como o ser humano é capaz de se despir de qualquer pudor e ética em nome da validação externa. “A hesitação em sua voz logo será um eco no recesso nas esferas do varejo”, diz Miss Luckmoore.
Apesar da tradução direta e reta para o português (em inglês, o longa se chama “In Fabric” – “em tecido”) e de sua premissa no mínimo estranha, o filme de Peter Strickland é repleto de referências do horror italiano que, aliado ao estilo mais rígido do diretor e roteirista, consegue manter uma atmosfera tensa e quase que indutora de ansiedade, mas não sem trazer momentos oportunos de descontração, algo já presente em alguns longas da filmografia do cineasta inglês.
Em “O Duque de Burgundy”, por exemplo, a rigidez cinematográfica característica de Strickland vem a calhar ao demonstrar a evolução de um relacionamento de sadomasoquismo erótico entre duas mulheres – relações assim costumam ser repletas de combinados e até mesmo contratos, o que permitiu o diretor usar e abusar da câmera estática e dos diálogos truncados para estabelecer um ritmo de ordem, subordinação e contradição das expectativas entre as protagonistas. Já em “Vestido Maldito”, é quase como se Strickland utilizasse esta mesma dureza no roteiro para tirar sarro de si, uma vez que os personagens mais imersos em rituais, papéis de gênero e posições de poder no trabalho são os que mais caem no lado cômico justamente por parecerem travados no tempo.
O cineasta também se mantém fiel às homenagens que deseja prestar: assim como em seu segundo longa-metragem “Berberian Sound Studio”, ele também homenageia o terror italiano conhecido como giallo ao mesmo tempo em que estabelece suas próprias regras. Há também um quê cronenberguiano em “Vestido Maldito”, uma vez que o filme não vai oferecer um assassino de carne e osso, mas um objeto possuído que vai intoxicando suas vítimas a partir da carne e levando-as à loucura lentamente. Outros momentos ecoam algumas cenas de “Videodrome – A Síndrome do Vídeo”. E tal premissa faz com que o longa não seja uma homenagem preguiçosa, mas que se torne uma obra própria que transcende as convenções do giallo enquanto honra suas tradições.
O que forma uma unidade estilística bem sucedida no filme é o foco de Strickland em estabelecer texturas em todos os aspectos do projeto. Sejam elas sonoras, gráficas ou materiais, as texturas em “Vestido Maldito” passam a impressão de que tudo está a um toque de distância, como o foco em metais e tecidos nos ambientes, os sons de sussurros constantes dentro da loja de departamentos que parecem mais feitiços sendo balbuciados sem parar, os sintetizadores e efeitos metálicos da trilha sonora e a câmera repleta de ruídos, como se fosse possível arranhar e sentir o filme com as próprias mãos. O resultado é uma obra que mostra as diversas camadas e texturas da perversidade humana.
É com detalhes assim que “Vestido Maldito” consegue usar sua fórmula de horror surreal e até mesmo humor sombrio para ultrapassar as barreiras de estranheza que a trama pode causar e entregar uma fábula anti-capitalista sobre consumo desenfreado e sedução enquanto mercadoria, mas sem esfregar a moral de sua história na cara do público a todo tempo. Como diria a personagem Miss Luckmoore: “A transação validou seu paradigma de consumismo?”.