Concedendo o merecido protagonismo a um setor social historicamente marginalizado, a série utiliza o terror com maestria para construir uma apaixonante ode à figura negra e consolida Misha Green como uma das grandes contadoras de história da atualidade.
A ficção sempre foi um prato cheio para traduzir fobias sociais em seres e fenômenos muito distantes da capacidade da compreensão humana. Reconhecido por muitos como um dos mestres do terror na literatura, o autor H. P. Lovecraft demonstrou desde os seus primeiros contos um enorme entendimento desse potencial, responsável por narrativas e criaturas que simbolizavam os medos que o mantinham acordado durante a noite. Apesar de suas contribuições como grande idealizador do chamado “horror cósmico” – referência às assustadoras limitações do homem em reconhecer os segredos alojados em cantos longínquos do universo -, o escritor infelizmente era bastante movido por terríveis forças da humanidade, encontrando em seu racismo e em sua xenofobia claras inspirações para as suas histórias. Se tal fato não impediu que as obras “lovecraftianas” transcendessem o tempo, não seria justa também uma oportunidade para as vítimas de seu pensamento ultrapassarem sua suposta monstruosidade e encarnarem o papel de heróis? Dedicada a dar protagonismo a figuras tradicionalmente marginalizadas, é exatamente essa a correção que faz a impressionante “Lovecraft Country”, produção original da HBO que mistura diferentes gêneros para construir uma estonteante peça de celebração racial.
Apaixonado desde criança por histórias pulp – tramas de fantasia, ficção científica e aventura que passaram a ser impressas em revistas baratas a partir da década de 1900 -, o veterano da Guerra da Coreia, Atticus Freeman (Jonathan Majors), retorna para a sua cidade natal após ser informado do repentino desaparecimento de seu pai, Montrose (Michael Kenneth Williams). Relutante em partir em busca da figura que sempre o maltratou, ele pede ajuda para o querido tio George (Courtney B. Vance) e para uma antiga amiga de sua infância, Letitia Lewis (Jurnee Smollett). Após uma breve investigação, os três descobrem uma relação entre o sumiço, uma antiga cidade de Lovecraft e o misterioso passado da mãe do protagonista, Dora (Erica Tazel). Dessa forma, eles embarcam em uma perigosa jornada na qual certas lendas mostrarão não serem tão fictícias assim. Baseada no livro homônimo de Matt Ruff, é essa a trama que inicia a deliciosa loucura apresentada pela série – que explora a cada episódio um sub-gênero do horror diferente – , produção que ainda traz nomes como Jordan Peele e se consagra como um maravilhoso exemplo de representação negra.
Criado pela roteirista Misha Green, cineasta que aqui também se destaca como produtora e diretora, o seriado chama logo a atenção por sua talentosa recriação de época, capturada por uma vibrante fotografia, feito que não economiza nos diferentes detalhes que reforçam a segregação dos anos 1950. Seja através das divisões físicas impressas em transportes e lugares públicos, de áudios verídicos sabiamente apresentados em voz off, das regras de recolhimento que, injustamente usadas na perseguição de cidadãos negros, determinam o angustiante ritmo do excelente piloto, ou da presença de grupos supremacistas e de sua clara associação com as forças policiais, a obra determina um ambiente facilmente imersivo e angustiante. A partir dessa excelente e palpável contextualização, torna-se então um privilégio à parte testemunhar a maneira como os diferentes capítulos costuram esse aparente realismo com os elementos sobrenaturais. Eles evoluem em escala e absurdo com o avançar da temporada, mas convencem por serem introduzidos desde os minutos iniciais. Mesmo com bestas, fantasmas ou maldições arcaicas – ameaças sempre materializadas por ótimos efeitos visuais e de maquiagem -, o importante é notar como o maior antagonista nunca deixa de ser aquele mais próximo da realidade: o violento ódio emitido por brancos preconceituosos.
Indo muito além da construção de um panorama acerca da inferiorização de certos setores sociais, a atração também encanta pela profundidade com que aborda as especificidades dessa problemática. Tal refinamento é alcançado pelo extraordinário tratamento dado a todas as personagens. Apesar de se estabelecer como o fio condutor dos principais acontecimentos, não é errado apontar que Atticus divide o protagonismo com diferentes figuras femininas, cada qual agraciada com um admirável arco de evolução. É o caso de Ruby Lewis (normalmente na pele da ótima Wunmi Mosaku), cantora talentosa que, incapaz de ser ouvida e afastada da irmã após uma série de brigas, passa a flertar com a possibilidade mágica de usufruir de certos privilégios. Assim, ela se vê assim dividida entre defender a sua família ou se render aos desejos com os quais sempre sonhou. Ao seu lado, temos também a interessante Ji-Ah (Jamie Chung), presença oriental que, se antes nem sequer existia no material original, é aqui dona de um capítulo inteiro para chamar de seu. Ascendendo como um dos pontos altos da envolvente viagem, o episódio Meet Me in Daegu – obra-prima escrita por Green e pelo autor asiático Kevin Lau – se destaca como uma inesquecível fábula sobre a maleabilidade da natureza humana, mostrando através da cultura coreana como não estamos determinados a ser quem os demais enxergam. Por conta disso, é um lindo conto que usufrui do ideal do “monstro” como uma construção inconsciente daquilo que tememos, para exemplificar a importância de se tomar as rédeas na construção da autoimagem.
Outras particularidades da luta racial e feminista ganham força através da incrível dupla entre filha e mãe estabelecida em Diana (Jada Harris) e Hippolyta Freeman (Aunjanue Ellis). Figuras inicialmente frágeis, elas recebem duas impressionantes ascensões. A primeira ganha destaque na oitava hora da produção ao ser utilizada como representante das inúmeras crianças negras que, de acordo com o discurso referenciado da jovem de 11 anos, Naomi Wadler, “foram convertidas em estatísticas”. Dirigindo esse segmento, Green busca assim embasamento no tenebroso histórico de desumanização desses jovens para assustar os espectadores, acertando com arrepiantes aparições que evocam vergonhosas tradições como o black face e a típica “imundície” com a qual muitos escravos eram retratados. Paralelo a esse tópico, a segunda personagem é submetida ao seu próprio passeio lúdico para enfim se tornar o exemplo que sua descendente sempre buscou, refletindo sobre os sacrifícios que uma mulher costuma fazer para se encaixar em uma família e, principalmente, acerca da urgência de se romper alguns deles. Juntas, são desse jeito um lindo lembrete da importância da passagem geracional pela qual ideais inspiradores estão sujeitos.
É claro que o elenco feminino não poderia estar completo sem a carismática “Leti”, braço-direito de “Tic” e a grande interpretação da carreira de Jurnee Smolett até agora. Uma militante rebelde afastada de sua família, ela se vê forçada a questionar tudo o que conhece a partir da inserção de aspectos inexplicáveis em sua vida, passando a reinventar a própria fé para não ser dominada pelo que é incapaz de compreender. Alternando perfeitamente entre a vivacidade contagiante da personagem e as sequelas das tensões as quais é submetida – conforme demonstra sua impressionante entrega no desfecho de Holy Ghost -, Smolett encarna assim um exemplo do quão fundamental é a reinterpretação de certos aspectos para encontrar novas formas de redenção. Tal aspecto acontece na vida de Letitia através da religião, por exemplo, antes vinculada a um trauma de infância mas depois uma plataforma para a sua libertação. Finalmente, temos também a antagonista interpretada por Abbey Lee, atriz que equilibra muito bem os traços de megalomania e humanidade de Christina Braithwhite. Isolada de um legado familiar por conta de seu gênero, a complexa “vilã” demonstra perfeitamente como a raiva nutrida contra certas injustiças pode também converter oprimidos em opressores.
Análoga a essa última presença, tal mensagem também é reforçada pela impactante presença de Montrose, figura que, encarnada pelo comovente Michael Kenneth Williams, se distancia do estereótipo do pai maldoso para revelar uma persona condicionada à violência em função da repressão de sua identidade. Ao seu lado, vemos seu filho adentrando em uma grande expedição para aprender sobre um passado ao qual nunca teve acesso e descobrindo a necessidade de se conectar com as próprias raízes. Lendo desde cedo histórias com grandes heróis brancos, ele se viu alienado, lutando por um país que jamais respeitou a sua existência. Agora ele encontra a oportunidade de vestir o manto que sempre considerou um mero escapismo. Antes tentando fugir de seu antecedente e se fantasiar como soldado, o energético Atticus de Jonathan Majors recebe a chance de fazer as pazes com o seu passado e perceber que talvez o espaço que lhe foi negado sempre esteve em suas raízes.
De modo geral, é esse o poderoso discurso construído nessa enlouquecedora montanha-russa de emoções, atração que mistura gêneros – transitando entre o drama, a ficção científica e o terror – para tecer uma inesquecível ligação entre os monstros construídos pelo inconsciente humano e as injustiças reais desempenhadas pelo ódio. Indo mais a fundo, “Lovecraft Country” é uma ode que transborda de criatividade a uma figura que durante décadas viu sua história sendo contada por outro narrador, um contador que encontrou múltiplas formas de transfigurá-la e remodelar a sua natureza de acordo com os seus interesses. Um ser que se viu submetido a um usurpador que ousou deformar culturas conforme ditaram os seus desejos, um colonizador que permitiu a perpetuação de ideais apodrecidos há séculos e que infelizmente persistem em alguns até hoje. Um símbolo que, conforme a fala do longa “Space Is the Place” resgatada pelo estrondoso episódio afrofuturista I Am – brilhantemente roteirizado pela criadora e pela escritora Shannon Houston -, só poderia ser descrito da seguinte forma:
“…Você não é real. Se fosse, você teria algum valor entre as nações do mundo. Então nós somos mitos… é isso que pessoas negras são. Mitos…”
Em uma era dominada pelo ressurgimento de ideais odiosos – fortalecidos pelas máscaras da internet e por ondas de negação ao passado – com o crivo da “ética do amortecimento” tentando ignorar o lado ruim de personalidades como H. P. Lovecraft -, Misha Green se coloca como uma gigante da contação de histórias para garantir um lugar tão negado aos seus ancestrais. Assim, ela prova de uma vez por todas o poder que só as grandes narrativas possuem: o de imortalizar os grandes mitos e permitir a transcendência dos seus princípios.