Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Os 7 de Chicago (Netflix, 2020): história poderosa que ainda ressoa

Episódio do julgamento histórico que aconteceu no fim da década de 60 ganha as telas com uma produção que impressiona - infelizmente - pela forte ligação com o presente e o elenco afiado.

O excelente drama “Os 7 de Chicago” poderia ser só mais um clássico filme de tribunal encenado por um elenco em plena sintonia. Ou apenas uma aposta da Netflix para o próximo Oscar. Com esses atributos já seria relevante e merecedor de atenção. Porém, o impacto que o segundo longa de Aaron Sorkin como diretor causa vai além das telas do streaming justamente por apresentar diversas semelhanças entre o presente e o passado. Não que a narrativa depende disso para ser notável, pois trata-se também de uma história muito bem contada e emocionante. Mas o que torna a obra de Sorkin especial e necessária é o seu poder em transcender as telas e o tempo, provocando uma reflexão mais profunda sobre o racismo estrutural, a ameaça à democracia e a corrupção do sistema que age de acordo com seus interesses.

Escrito e dirigido por Aaron Sorkin (vencedor do Oscar de Melhor Roteiro Adaptado por “A Rede Social”), o longa – baseado em fatos reais – retorna a agosto de 1968, quando 7 homens – no início do processo eram 8 -, foram acusados pelo governo dos Estados Unidos de conspiração, incitação à revolta e outras denúncias relacionadas a protestos contraculturais em Chicago, Illinois, durante a Convenção Nacional Democrata que definiu  o então vice-presidente Hubert H. Humphrey como candidato à presidência. Certa vez, o crítico e cineasta Eric Rohmer disse: “Todo filme é também um documentário de sua época”. Até mesmo para um hábil roteirista como Aaron Sorkin seria difícil ‘prever’ que pouco mais de 10 anos depois de finalizar o roteiro, seu filme chegaria com tanta relevância.

Chegou. E de maneira intensa. A começar pela montagem fluida e criativa de Alan Baumgarten (“As Panteras”), que logo no início apresenta um padrão que será retomado também adiante com a mescla de registros documentais da época com representações ficcionais. Esse tipo de montagem e a forma como ela é construída, confere veracidade aos fatos e aumenta o impacto perante o público, que vai se pegar assistindo aquilo com indignação, principalmente nas sequências que retratam o confronto de policiais com manifestante, registradas de maneira visceral pelas câmeras. Além disso, a sobreposição de planos é ágil o bastante para tornar o julgamento um acontecimento enérgico, sem espaço para distrações ou fadiga. Um ritmo ditado também pela condução frenética de Sorkin.

Se como roteirista não há dúvidas de que é um dos mais arrojados e eficientes de Hollywood, e ele prova isso outra vez com seus diálogos rápidos e densos numa história bem coesa, além da introdução de flashbacks que completam os fatos abordados no tribunal, na direção faltava um teste de fogo. Sorkin só havia dirigido “A Grande Jogada”, e aqui, um pouco mais à vontade na função, tem a tarefa de guiar um elenco recheado de estrelas. Seguindo suas instruções, os personagens tridimensionais de Sacha Baron Cohen, Jeremy Strong, Eddie Redmayne, Yahya Abdul-Mateen II, Mark Rylance e Joseph Gordon-Levitt, se destacam perante o juiz interpretado por Frank Langella transformam o longa numa experiência altamente satisfatória, onde cada atuação é sempre muito esperada e os confrontos verbais vigorosos.

Embora traga em seu pano de fundo a Guerra do Vietnã, episódio marcado pelo morte de milhões de jovens americanos (e essa tragédia é reforçada por um final ao mesmo tempo triste e arrebatador) e que potencializa o drama do filme, a mensagem que a narrativa entrega no final não deixa de ser universal. Sabendo exatamente onde deseja chegar com sua história e disponibilizando de elementos técnicos e humanos perfeitamente alinhados para contá-la, o dinâmico e tocante “Os 7 de Chicago” é impulsionado pelos eventos que ocorrem lá fora. No entanto, promete agradar até mesmo quem, por ventura, está alheio ou não se interessa pelo drama da vida real. Uma história potente, que recriada de maneira poderosa mais de meio século depois, vem comprovar que o racismo, o preconceito e a opressão ainda ressoam e não tem prazo para acabar.

Renato Caliman
@renato_caliman

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