Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 02 de outubro de 2020

Ratched (Netflix, 2020): loucura envolvente e sofisticada

Vendida como prelúdio de "Um Estranho No Ninho", a série não surpreende, mas em voo solo é um atestado cativante da mente efervescente de seu criador.

Se tem alguém que tem trabalhado quase que ininterruptamente nesses últimos anos, essa pessoa é Ryan Murphy (enquanto escrevo essa crítica ele deve estar escrevendo outras duas histórias). Primeiro ele despontou com séries como a musical “Glee” e a antológica “American Horror Story”. Depois ganhou vários prêmios Emmy pelas minisséries da saga ”American Crime Story”, que relembraram o crime do ex-jogador O.J. Simpson e o assassinato do estilista Gianne Versace. E mais recentemente, após fechar uma acordo milionário com a Netflix, tem emplacado uma produção atrás da outra. “The Politician”, Hollywood e agora “Ratched”, série que engana como origem de sua protagonista, mas que promete envolver o espectador com seu belíssimo visual, reviravoltas sangrentas e uma protagonista em estado de graça.

Inspirada na antagonista do romance “Um Estranho no Ninho” de Ken Kesey, que mais tarde deu origem ao Oscarizado longa de Milos Forman, a criação de Ryan Murphy e Evan Romansky conta a história de Mildred Ratched, enfermeira que em 1947 começa a trabalhar no Hospital Psiquiátrico de Santa Lucía. Se por fora aparenta ser uma mulher refinada, bem educada e generosa, por dentro, Mildred esconde uma faceta sombria, cujas causas e consequências são reveladas ao longo da trama. Pensada como um prelúdio da versão cinematográfica estrelada por Jack Nicholson e Louise Fletcher, “Ratched” mais engana do que convence o seu público, devido ao carimbo autoral de um dos seus idealizadores. Ao lado de Romansky, Murphy utiliza-se apenas do nome e do mito para construir uma narrativa mais colorida e excêntrica.

Enquanto no clássico de 1975, o diretor Milos Forman se encarregava de inserir o espectador num ambiente praticamente sem vida, ilustrado pela paleta de cores fria e alguns personagens calculistas, aniquilando assim a possibilidade de (re)nascimento dentro do lugar, o criador e também diretor de alguns episódios da série, Ryan Murphy opta aqui por se afastar do design de produção do filme – e também de sua fotografia crua. Colocando sua personalidade em cena, ele transforma o Hospital Psiquiátrico de Santa Lucia, onde se concentra grande parte da narrativa, é um ambiente imponente, chique e cheio de cores vivas. À primeira vista acolhedor, porém não menos ameaçador. Questionável, a decisão acaba cortando laços importantes que possam traçar qualquer ligação entre série e filme, em contrapartida, ecoa originalidade.

Um dos grandes trunfos da produção, além de sua abordagem estética mais sofisticada, é, sem dúvidas, o elenco. Recheado de figuras que já trabalharam com Murphy, os personagens configuram uma parte importante no desenvolvimento e no suspense da narrativa, sendo Sarah Paulson a estrela principal. Encarregada de reimaginar uma das vilãs mais icônicas do cinema a uma nova geração, a atriz coloca seu talento pra jogo, utilizando-se de todo seu background dramático e as vivências em “American Horror Story” para conferir a sua protagonista camadas, que vão desde a empatia e o altruísmo, até traços de sociopatia, tirania, crueldade e sadismo. É possível gostar, sentir pena e também odiar sua Mildred Ratched. Surge ao mesmo tempo frágil – e deixa isso claro no olhar -, feroz e determinada – principalmente em seus diálogos.

Gay assumido e defensor do movimento LGBTQIA+, Murphy frequentemente inclui em suas narrativas discussões sobre o tema, que tem ganhado espaço, mas ainda enfrenta nojenta resistência de algumas pessoas. Em “Ratched” não é diferente. O assunto é tratado sob a perspectiva da protagonista e seus conflitos em se aceitar ou não, o que rende momentos bem sinceros. Se em outros momentos a direção e o roteiro pesam a mão, no relacionamento entre Mildred e Gwen (Cynthia Nixon) a delicadeza se sobressai e sequências bonitas podem ser vistas. Além disso, a série relembra uma época em que métodos cruéis eram utilizados a fim de ‘curar’ um ser humano do que eles acreditavam serem doenças, como, por exemplo, a orientação sexual que não aquela estabelecida pela sociedade puritana.

A produção relembra ainda – com o auxílio de passagens aterrorizantes – uma época em que a lobotomia (intervenção cirúrgica no cérebro) e banhos em água escaldante eram introduzidos na medicina com o objetivo de recuperar um paciente esquizofrênico ou que tenha sofrido algum tipo de trauma. Acompanhada por um trilha incômoda, “Ratched” é uma narrativa de ritmo cadenciado, bem dirigida e que envolve pela elegância e sua falta de pudor em ilustrar a crueldade física e psicológica. Uma série que tem seus excessos, mas cheia de loucura encantadora e cores vibrantes, do jeito que o seu criador gosta e o público espera.

Renato Caliman
@renato_caliman

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