Produção brasileira que concorreu ao Urso de Ouro no Festival de Berlim 2020 vem para indagar o espectador sobre a atual condição social e racial do país.
Embora venha sofrendo nos últimos anos com a falta de reconhecimento e constantes ataques da ala conservadora da política, que vê a cultura como perda de tempo e má influência, o setor cultural no Brasil se mantém de pé. O cinema, uma de suas frentes mais relevantes, permanece como fonte crítica essencial que ensina, questiona e, claro, entretém. Nesse balaio de ensinamentos e indagações encontra-se o drama “Todos Os Mortos”, dos diretores Caetano Gotardo e Marco Dutra. Único filme brasileiro selecionado para a mostra competitiva do Berlinale, a produção apresenta de maneira criativa uma visão sobre o tipo de país no qual vivemos.
Na trama, o ano é 1899. Dez anos depois do fim da escravidão, os Soares, família aristocrata do café paulista que agora se vê à beira da ruína, relutam em acompanhar o rápido crescimento da sociedade a sua volta. Enquanto isso, a família Nascimento, recém-libertada e à deriva após o fim do período escravocrata, luta para achar um lugar onde fincar suas raízes e viver seus costumes. Acompanhando as histórias de uma família branca e outra negra, o roteiro engenhoso escrito por Gotardo (“O Que Se Move”) e Dutra (“As Boas Maneiras”) quer retratar o choque entre classes e cores. Porém, ao longo da narrativa deixa claro que o desenvolvimento dos personagens não é o principal.
O projeto de Dutra e Gotardo, com cada um fazendo valer suas referências no drama e no terror, vai além da abordagem simplista e demonstra originalidade para ampliar o debate acerca dos problemas raciais, manifestando maior interesse em registrar aquilo que permeia as famílias. Inicialmente filmado em planos mais fechados, uma decisão que por si só já leva o espectador a prestar atenção nas atuações do ótimo elenco, a direção dos amigos vai aos poucos se abrindo aos olhos da audiência, oferecendo pistas e revelando um cenário bem conhecido por nós. Os postes elétricos, muros pichados, o som do helicóptero ao fundo e os edifícios modernos se colidem com conceitos e atitudes ultrapassadas.
Induzido a crer que está acompanhando uma daquelas histórias de época, o espectador tão breve começará a notar algumas surpresas com a introdução gradativa desses elementos tão presentes no cotidiano do século XXI, promovendo assim uma palpável sensação de desconforto e estranheza que persiste até o final. Essa experiência é elevada também graças a fotografia precisa de Hélène Louvart (“A Vida Invisível”), que aliada ao bom trabalho de reconstituição de época de Juliana Lobo (“Que Horas Ela Volta?”) no design de produção é capaz de estabelecer uma atmosfera permeada por desconfiança e um certo terror em diversos enquadramentos onde, por exemplo, existe baixa incidência de luz.
Encabeçado por Clarissa Kiste (“Ferrugem”) e Mawusi Tulani (“Hebe: A Estrela do Brasil”), “Todos Os Mortos” desfila um elenco bem entrosado, majoritariamente feminino e muito talentoso, cuja evidente formação teatral ajuda, sobretudo, na construção dos personagens. Uma pena, no entanto, que as críticas presentes no subtexto sejam mais apuradas que o texto principal. A direção disponibiliza tempo e espaço para que as atrizes reproduzam os diálogos afiados, porém o desenvolvimento das personagens não ocorre com profundidade, sentido na ausência de emoção numa narrativa onde ela também é necessária. O longa, que aborda ainda questões como o machismo, orientação sexual e religião, expõe com precisão o quão atrasado e mortos estamos como nação.