Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 16 de setembro de 2020

O Diabo de Cada Dia (Netflix, 2020): boa reflexão sobre o mal de cada um

Longa do diretor Antonio Campos para a Netflix propõe uma reflexão sobre o mal dentro de cada um, e o quanto esse mal pode ser estimulado, ou simplesmente surgir do nada.

O título “O Diabo de Cada Dia” define bem o que veremos nas 2h18min seguintes ao play: dor e sofrimento constantes e ocasionados pelo mal. Mal este que está longe dos arquétipos vilanescos comuns que tanto se repetem ao longo dos anos no cinema. O que o diretor e roteirista Antonio Campos (“Christine”) deseja nos mostrar é que até em um interior nada glamouroso dos EUA, em um período onde a epítome da crueldade supostamente encontrava-se além das fronteiras americanas, o mal se espalha facilmente, pois ele está contido na natureza de cada ser humano.

E este mal se apresenta nas mais diversas formas. Inicialmente somos apresentados a Willard (Bill Skarsgård), veterano que testemunhou o horror da Segunda Guerra Mundial em sua forma mais vil, lhe causando traumas difíceis de reverter. Sua presença constante na Igreja (graças à sua mãe religiosa) o faz reviver o pior desses traumas. E alguns anos depois, sua mulher sofre de um câncer avançado. As atitudes que ele toma após tudo isso são chocantes, mas a reflexão que se repete também para os demais personagens é: tudo que ele sofreu pode justificar as atrocidades que ele cometeu? E para deixar tudo ainda mais complexo, papéis como o pastor dissimulado de Robert Pattinson ou o serial killer de Jason Clarke sequer possuem esse viés – são apresentados apenas como maus por natureza. Para nós são cruéis e ponto, mas caso nos fosse mostrado um background mais preciso, seriam essas ações passíveis de indulto?

Para pontuar tudo de mais importante, Campos utiliza elipses precisas, que não nos deixa sequer digerir certas situações, e em um segundo nos coloca frente a frente com as consequências do que vimos anteriormente. Aliás, todo o filme apela para nos deixar angustiados, construindo uma aura de que, a todo momento, uma tragédia é iminente. A trilha sonora – por vezes invadindo até demais a obra -, a fotografia soturna, as atuações dos já citados, mas especialmente do Willard de Skarsgaard e do seu filho Arvin, muito bem interpretado por Tom Holland, tudo isso contribui para que o sentimento de assistir “O Diabo de Cada Dia” seja sempre um: angústia.

Ainda assim, a linha narrativa proposta por Campos pode soar um tanto irracional, sem uma jornada clara a seguir. Mas apesar de parecer descabido, a ideia corrobora a intenção inicial do cineasta em demonstrar como o mal é algo intrínseco ao ser humano, independente de origem ou crença. A impressão é de que o diretor escolheu um recorte banal de tempo e espaço, onde dificilmente algo extraordinário aconteceria, e mostrou que até nos lugares mais ordinários, o mal se instaura sem dificuldades. Logo, o que importa para a trama não é uma jornada do ponto A ao B, mas sim o que cada personagem está vivendo.

E personagem é o que não falta em “O Diabo de Cada Dia”. São tantos atores e atrizes de qualidade que não era uma missão fácil dar espaço e desenvolvimento a cada um. A solução encontrada pelo diretor foi trabalhar com blocos narrativos, onde vemos uma parte da história de certo personagem, e assim que esse recorte acaba (normalmente de forma trágica), já estamos visualizando um novo núcleo. Por vezes precisamos, inclusive, encarar pequenos loops temporais para entender o outro lado da história, quando os personagens acabam se cruzando.

Apesar da possível aleatoriedade na escolha do local, o tempo não poderia ser melhor definido. A história se passa por anos entre a Segunda Guerra Mundial e a Guerra do Vietnã, dois momentos horrendos da história, mas que os EUA se utilizaram ao máximo para vender sua ideia de que o horror está lá fora (das suas próprias fronteiras), e deixando esquecido o muito da crueldade que existia lá dentro. Além disso, o longa também traz doses de críticas ao fanatismo religioso, retratando diferentes tipos de fé e reservando a todos o mesmo destino, como se pouco importasse a hipocrisia de alguns e a inocência de outros.

O grande problema de “O Diabo de Cada Dia” seria sua possível falta de alma, enquanto obra audiovisual. Mas, de certa forma, isso conversa bem com o pessimismo que o filme busca retratar, da forma mais aterradora possível. Quando o mal toma conta (e isso acontece em qualquer lugar, afinal, nós que o carregamos), não importa mais a fé, não existe mais segurança, não temos mais perdão. O inferno que nós mesmos criamos nunca deixa de existir. 

Martinho Neto
@omeninomartinho

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