Ambientada em uma sociedade alternativa, mas não tão diferente da nossa, esta pérola pouco falada da Netflix fala sobre a necessidade de cuidarmos do tortuoso labirinto da mente humana.
A mente humana é um mistério. Há aqueles para quem a jornada da vida e a do autoconhecimento se confundem conforme novas etapas se encerram e se iniciam, e há quem passe a vida inteira tentando descobrir quem é. Seja como for, essa jornada nunca é fácil, e todas as formas de se descobrir têm seus empecilhos e obstáculos, podendo levar desde uma vida vazia e superficial até questões psiquiátricas mais profundas. É nesse segundo grupo que “Maniac“, uma pérola pouco falada da Netflix, se concentra.
A produção conta com um elenco liderado por dois dos maiores nomes de Hollywood atualmente, Emma Stone e Jonah Hill, e um dos principais diretores do ramo atrás das câmeras, Cary Joji Fukunaga (“Beasts Of No Nation“). Espanta, portanto, o fato de ter passado quase desapercebida pelo grande público após seu lançamento em 2018.
Fukunaga e o roteirista Patrick Somerville se basearam em uma série norueguesa homônima de 2014, que contava a história de um homem que opta por viver em um universo de fantasia e ilusão dentro de sua própria mente a enfrentar a realidade. Na versão de 2018, a premissa se mantém, mas com um mundo muito mais rico e elaborado construído ao redor da narrativa, que também tem dois protagonistas bem diferentes entre si, apesar de encaramem desafios similares.
Owen Milgrim (Jonah Hill) e Annie Landsberg (Emma Stone) são dois jovens profundamente atordoados psicologicamente, cujos caminhos acabam se cruzando quando eles se voluntariam para participar de um experimento da empresa farmacêutica japonesa Neberdine. É testado um tratamento que poderia ser simplesmente o sonho de todos que sofrem de depressão, ansiedade ou qualquer outro distúrbio: três pílulas milagrosas que prometem fazer com que o usuário esteja 100% após o período de uso (que não é contínuo, veja bem), aliado à terapia conduzida por médicos excêntricos e uma inteligência artificial temperamental chamada GRTA. Dessa forma, o tratamento promete mapear a psique do paciente, identificar seus principais traumas e, por fim, confrontá-los.
Cada um dos protagonistas tem uma série de motivações por trás da decisão de participar dos testes: Owen é a ovelha negra de sua família, sendo constantemente renegado por seus pais e irmãos, além de sofrer de esquizofrenia; Annie, por sua vez, vem tentando lidar com a perda de uma pessoa querida, encontrando refúgio na dependência química. Ele se voluntaria para, de fato. tentar tratar sua doença, enquanto ela está em busca apenas de um estoque novo de remédios para se entorpecer e fugir de sua dor. Entretanto, ambos acabam encontrando muito mais do que haviam imaginado inicialmente quando olham para si próprios.
O enredo da obra é situado em um futuro alternativo não muito diferente do que provavelmente iremos vivenciar. Apesar da ausência de celulares e redes sociais, o mundo construído é essencialmente igual ao nosso: uma sociedade pautada no consumo constante, com uma fé inabalável na tecnologia e com relações interpessoais cada vez mais deixadas em segundo plano, sendo possível literalmente pagar pessoas para interpretarem até mesmo os amigos mais íntimos. Tudo pode ser feito sem desembolsar um tostão, desde que se aceite ouvir alguém recitar anúncios e propagandas. Já não basta apenas ter, é preciso ter mais do que antes.
O principal atrativo, no entanto, não é necessariamente o universo em que tudo é ambientado, mas os universos que os próprios personagens habitam. A trama se desenrola majoritariamente dentro de representações digitais dos traumas dos personagens principais, e busca explorar a forma com que a sociedade lida com a saúde mental. Assim como o mundo dos sonhos em “A Origem“, de Christopher Nolan, essas representações é extremamente rica em detalhes que, à primeira vista, quase certamente passarão desapercebidos. Entretanto, cada um deles evidencia como a relação entre mente e sociedade se torna progressivamente disfuncional – além de escancarar as consequências que sofremos quando evitamos lidar com nossos problemas.
Não bastasse o lindo mosaico que a trama desenrola, a produção ainda é um exemplo dos desafios que escritores e contadores de histórias precisam superar para poder falar com grandes públicos na era do streaming. Durante o desenvolvimento da série, Fukunaga e Somerville tiveram o auxílio dos dados da Netflix sobre seus consumidores para planejar cada episódio. Enquanto isso pode soar como uma limitação para alguns, a dupla soube capitalizar esse insight ao criar uma temporada curta, porém coesa, na qual seus capítulos sequer têm duração fixa e se propõem a ir fundo nas mentes dos protagonistas.
Ao final, a moral da história é que a psique humana é um labirinto que pode ser assustador à primeira vista, mas no qual precisamos nos aventurar e, não obstante, do qual também precisamos cuidar à medida que desvendamos. O próprio tema de Dan Romer para Annie e Owen evidencia a natureza gradual dos cuidados à saúde mental, começando com pequenos passos que levam invariavelmente a grandes descobertas. Infelizmente, não há remédios ou tratamentos milagrosos que curem de forma instantânea condições que se formaram ao longo de anos. Em um mundo cada vez mais hostil como o atual, manter isso em perspectiva é um desafio ainda maior. Um fato que obras como “Maniac” nos ajudam a lembrar com carinho.