Enquanto a narrativa segue o taxista Paulo pelas ruas cariocas, o cineasta Eryk Rocha cria um estudo de personagem e de cidade que acerta o misto de emoções divergentes pretendido.
“A melancolia é a felicidade de estar triste”. A frase do romancista Victor Hugo parece se encaixar como uma luva naquela percepção que diz que a melancolia pode ser uma dor permitida, ou seja, a lembrança de algo que não está mais conosco, porém de alguma maneira ainda marca nossas memórias e sentimentos. É essa sensação que pode acompanhar a jornada por “Breve Miragem de Sol”, um drama situado no Rio de Janeiro e baseado em um motorista de táxi, que trabalha com a dualidade de emoções antagônicas.
Considerando a proposta da narrativa, podemos perceber que o diretor Eryk Rocha (“Cinema Novo“) criou um estudo de personagem e de cidade. Enquanto acompanhamos o desenrolar da trama, protagonista e ambiente são desenvolvidos. Paulo se divorciou há pouco tempo e começou a trabalhar como taxista após ser demitido de seu emprego anterior. Esforçando-se ao máximo para ganhar o suficiente para pagar a pensão do filho, ele faz corridas noturnas e se depara com passageiros muito diferentes entre si.
Já na sequência de abertura, sentimos as primeiras reações que aquelas viagens proporcionam: a câmera dentro do carro revela lentamente o motorista (primeiro as mãos no volante e depois outras partes do corpo até chegar ao rosto), além de expor os acontecimentos na rua na hora do rush (ruídos ininterruptos de várias origens, movimentação de pessoas e outros veículos e luzes intensas por todo lado). Mesmo quando o exterior é registrado, o enquadramento feito de dentro para fora como ocorre nas cenas iniciais em que os vidros molhados das janelas ocultam parte do que se poderia ver. Tal estratégia se repete nos momentos em que Paulo conduz os passageiros, já que a câmera passeia pelo interior do automóvel ora captando o banco de trás, ora captando o banco da frente através de closes ou planos conjunto. Até quando expulsa jovens inconvenientes, o ponto de vista está no carro e não na rua.
Por construir muitas sequências no táxi, os passageiros são retratados em sua variedade de características e impactos sobre o protagonista. Alguns são amigáveis, outros incômodos e mais alguns meros flashes esquecíveis: jovens bêbados com “brincadeiras” indesejáveis, um casal estrangeiro com dificuldades financeiras, um executivo envolvido em negócios questionáveis, mãe e filho com uma linda relação afetiva e uma mulher com quem constrói um vínculo amoroso. A partir da dinâmica com esses personagens, Paulo é desenvolvido com sutileza e cuidado: um sujeito solitário de poucas palavras, tom de voz pouco expressivo e uma expressão facial reveladora das tentativas de controlar suas emoções. Existe um minimalismo na forma como Fabrício Boliveira compõe o protagonista que traduz em pequenos gestos a dor de não ter o filho por perto, mas ainda guardar memórias positivas enquanto lida com a solidão e os desafios de seu trabalho.
Embora passagens consideráveis do filme se passem no veículo, Eryk Rocha encontra recursos inteligentes para comentar como está a cidade por onde Paulo dirige. Planos laterais simulando o olhar do taxista mostram áreas periféricas, marginalizadas pela falta de políticas públicas, e pessoas em condições adversas vivendo nas ruas. Além disso, os efeitos sonoros trazem notícias de rádio e mensagens de colgas para informar sobre o cotidiano do Rio de Janeiro, como acidentes de trânsito, engarrafamentos, crimes, polêmicas eleitorais e ações de hackers. Ainda que o automóvel seja um universo em si mesmo, semelhante ao que foi feito “Locke“, o interior e o exterior, a cidade e o protagonista se relacionam.
Nos momentos em que a ação deixa o interior do carro e ganha as ruas, fica mais evidente o contato entre sensações divergentes, definidas por desencanto e esperança. Em termos de personagem principal, Paulo é influenciado pelo espaço ao redor e trilha um percurso em que tenta encontrar um refúgio para a solidão: enfrentar a distância do filho e a falta de dinheiro através de interações positivas com companheiros de profissão e com a enfermeira Karina. Em termos de localização espacial, o lugar é ressignificado pelo homem, afinal pode conter desigualdades sociais e brigas de torcida de futebol, mas também oferece situações acolhedoras em contato com a água do mar e com a espontaneidade da cultura popular.
A saída para o ambiente aberto também é acompanhada por um tratamento visual que continua valorizando o personagem central sem perder de vista o cenário. A câmera não se afasta de Paulo enquanto o segue pelas costas ou se fecha em planos muito próximos de seu rosto – ao mesmo tempo, a câmera na mão e quebra da quarta parede apresentam naturalidade no tom e um vínculo emocional constante com o taxista. Em paralelo a isso, o Rio de Janeiro igualmente tem seu valor dramático porque é fundamental nesse estilo de filme urbano que a cidade seja valorizada, algo feito pela integração entre locações e personagens para dar vazão à intensidade do trânsito cheio, à solidão das noites avançadas e à diversidade dos lugares ali existentes.
Se Victor Hugo fosse um passageiro, provavelmente sua frase viria à tona numa conversa com o motorista. Ela viria da percepção de que a cidade pode ser maravilhosa e angustiante, a depender do olhar de quem a vê e da posição social que ocupa; e também da experiência vivenciada por um protagonista que sorri, chora, ama e se revolta ao longo de uma trajetória imperfeita, na qual as imagens de encerramento podem ser sonho, desejo, esperança, realidade, memória ou até imaginação não alcançada. Qualquer que seja a leitura para esse desfecho, Paulo, o Rio de Janeiro e os espectadores experimentam uma breve miragem de Sol num contexto aparentemente apenas desesperançoso.