Trazendo ótimas atuações e uma contagiante personalidade, o filme reafirma Charlie Kaufman como um dos mais corajosos cineastas da atualidade através de uma fascinante análise das projeções que criamos no combate de medos internos.
Especialista na exploração de importantes questões existenciais, o cineasta Charlie Kaufman sempre exibiu uma assinatura carregada de personalidade. Munido de muita sensibilidade no desenvolvimento de suas produções, ele costuma escolher caminhos ousados e repletos de coragem, sempre construindo narrativas afastadas de obviedades e repletas de um universalismo capaz de atingir até mesmo os mais insensíveis. Da cabeça do conhecido ator John Malkovich – “local” de fácil acesso no bizarro “Quero Ser John Malkovich” – ao mosaico de memórias tecido em “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças – belíssimo conto sobre o amor que lhe rendeu um merecido Oscar -, Kaufman escreveu inesquecíveis fábulas originais, mestre na transmissão de importantes mensagens sobre as relações que estabelecemos uns com os outros. Não bastassem os seus talentosos roteiros, o cineasta estreou na direção em 2008 com o igualmente marcante “Sinedoque, Nova York“, revelando outro dom da sétima arte que viria a reforçar, em 2015, com a animação “Anomalisa” – inquietante drama sobre os horrores da monotonia cotidiana. Continuando assim uma impressionante filmografia, não é de se surpreender que “Estou Pensando em Acabar com Tudo” traz consigo uma enorme antecipação, obra produzida pela Netflix que reafirma as peculiaridades de seu diretor e sua extrema habilidade em adentrar o inconsciente humano.
Insatisfeita em seu relacionamento com o namorado Jake (Jesse Plemons), uma jovem mulher (Jessie Buckley) lamenta os rumos adotados em sua vida enquanto questiona se deve ou não levar a relação adiante. Quando o parceiro resolve apresentá-la para os seus pais (Toni Colette e David Thewlis), a protagonista decide então adiar a resolução da incógnita enquanto tenta se reencontrar durante a viagem, buscando usar a visita para acalmar a confusão de pensamentos em sua mente. Ao chegar lá, entretanto, ela percebe que a família possui estranhos comportamentos, adentrando assim uma enervante jornada dentro da própria psique para aprender a lidar com os próprios demônios. Baseada no livro homônimo de Iain Reid, é essa a intrigante trama que Kaufman adapta com seu inconfundível DNA cinematográfico, convidando a plateia a embarcar em um turbulenta jornada sobre os medos da consciência e os mecanismos que estes nos levam a adotar.
Extremamente bem estruturado, o longa apresenta como primeiro destaque a impressionante maneira como consegue se diversificar a cada novo segmento, capaz de manter a atenção do espectador efetivamente durante a maior parte da duração. Se o início se destaca por trazer uma opressora conversa dentro de um claustrofóbico carro – sendo o aprisionamento perfeitamente amplificado pela gélida ambientação e pelos tons sombrios da penetrante fotografia -, o segundo ato chama a atenção pela forma como as angústias da personagem principal começam a se desprender de sua consciência, passando à sua tradução na tela através de envolventes e surreais sequências que sugerem a dificuldade. Dessa forma, a atração acaba apresentando um exemplar domínio de ritmo – à exceção de alguns diálogos demasiadamente longos – aumentando gradativamente em uma espiral crescente de loucura que só o diretor é capaz de fazer ao mesmo tempo em que representa as explosivas consequências da repressão de crises pessoais internas – não por acaso sendo as “correntes” um simbolismo bastante presente no filme.
Indo além de seu bom andamento, é também digna de elogios a construção da curiosa dinâmica que as personagens estabelecem entre si, sendo especialmente prazeroso tentar decifrar os paralelos estabelecidos entre as coadjuvantes e a figura central destituída de nome. Se a última tem como principal característica a auto-contenção de seus próprios pensamentos – marca que é reforçada pelo aspecto reduzido da tela sabiamente escolhido para a produção, “prendendo” a moça dentro de sua própria cabeça -, o excêntrico casal formado por Collette e Thewlis – atores que juntos dominam com perfeição os gestos e a maneira de falar que a atuação “não-realista” exige deles – é a perfeita ilustração de figuras que resolveram livrar-se de seus filtros com o avançar dos anos, sendo extremamente diretos na transmissão de seus sentimentos e opiniões. Dessa forma, é curioso perceber como a retratação desses mesmos sob uma ótica “repulsiva” – com certas características físicas e uma inquietante trilha sonora contribuindo para tal – acaba unificando a protagonista e o público em um estranhamento provocado pela incompatibilidade geracional de certos comportamentos. Por conta disso, articula-se assim não só um interessante comentário acerca dos rótulos que estabelecemos sobre os demais – que, nesse caso restrita a questão da idade, apresenta-se de outras formas no decorrer do longa -, como também denuncia o pavor que a passagem da vida causa na personagem central, sendo um constante lembrete de que ela deve romper com certas “máscaras” – se desafiando a sair da sua zona de conforto – para escapar em tempo de laços possivelmente fadados ao fracasso.
Não suficiente, é igualmente gratificante a maneira como os diálogos determinam completamente as interações entre a “jovem mulher” e o namorado Jake, fundamentais na definição de suas personas. Carregados de falas poéticas e trazendo uma grande intertextualidade com outros exemplares da cultura pop – escolha que alcança o universalismo típico de Kaufman, bem como convida quem assiste a enxergar determinadas mensagens sobre um outro ponto de vista -, são eles que revelam, por exemplo, como a figura do excelente Jesse Plemons – que em sua performance mistura com maestria carisma e doses de fragilidade – projeta sua insegurança em um vasto domínio cultural, tentando compensar as sequelas de um crescimento conturbado – cujas causas, embora não reconheça, estende parcialmente aos pais – através de uma vasta inteligência e, é claro, da companhia de uma bela moça. Indo mais a fundo, é também nas conversas (sejam elas internas ou não) que as angústias desta última são reveladas – e muito bem performadas por uma mentalmente desgastada Jessie Buckley -, desenhando assim uma protagonista complexa e que carrega consigo importantes reflexões acerca do papel feminino e da dependência presente nas diferentes formas de nos relacionarmos. Assombrada pela ideia de ser resumida a um mero acessório da felicidade de Jake, ela tem seus medos exteriorizados nas impressionantes sequências conduzidas pelo diretor, passagens que incorporam suas inconfundíveis marcas autorais e que fascinam ao transitar do terror à fantasia idealizada de grandes clássicos americanos.
Com tudo isso, é possível identificar um interessante discurso acerca dos perigos das projeções que realizamos diariamente, comandados por nossos temores. Sejam estas voltadas aos demais – significando irreversíveis taxações que podem provocar afastamentos -, ou aos produtos que consumimos por meio da arte – meras idealizações para que não se perca a esperança -, fica claro o quão complicadoras estas podem ser, por vezes convertendo manipuladoras máscaras em sinônimos de segurança e nos impedindo de ir além de convenções falsamente confortáveis – conforme acontece com a “jovem mulher”, incapaz de acabar com tudo que a incomoda. Como se não bastasse, Kaufman ainda coroa sua fala ao evidenciar a importância de se diferenciar a externalização saudável do que é sentido – única forma de verdadeiramente encontrar apoio no ombro do outro – da espetacularização dessas mesmas sensações, em vários casos reduzidas a artificiais formas de se chamar atenção, conforme exemplificam alguns dos explosivos minutos finais. Ao fazê-lo, todavia, o cineasta quase comete o erro de tentar resumir temas demasiados em uma única obra, aspecto que consegue controlar suficientemente bem mas que pode soar exagerado em determinados momentos.
Por fim, é essencial ressaltar o fator “replay” apresentado pelo filme, trazendo símbolos – tais como o porão injustamente responsabilizado por medos irracionais, entre incontáveis outros – e significados escondidos que tornam essa uma experiência perfeita para ser aproveitada mais de uma vez. Mais do que apenas isso, é igualmente importante se isentar de quaisquer tentações de classificar a produção sob uma única leitura, sendo enriquecedor a maneira única como cada espectador irá dialogar com a mesma. Com tudo isso, “Estou Pensando em Acabar com Tudo” é mais uma grande adição a contagiante filmografia de Charlie Kaufman. Carregados de particularidades típicas da assinatura do diretor, é uma obra rica em interpretações, difícil de ser classificada e que esbanja altíssimas doses de criatividade em seu desenvolvimento. Traduzindo como poucas os horrores de se entrar em conflito com a própria mente, é um filme que (entre os inúmeros assuntos que ousa abordar) se reinventa a cada minuto e que denuncia os perigos de se confundir uma externalização adequada de nossos dramas pessoais com a artificialização dos mesmos por meio de projeções meramente ilustrativas.