Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 29 de agosto de 2020

Boys State (Apple TV+, 2020): assombroso e necessário prenúncio de futuros líderes

O documentário acompanha um programa voltado para adolescentes que simula de maneira assustadora a formação de um governo democrático com o objetivo de formar os próximos líderes.

Boys State” é um documentário norte-americano contratado para distribuição mundial pela plataforma de streaming Apple TV+ após garantir prêmios do júri nos festivais de Sundance e South By Southwest em 2020, uns dos poucos que aconteceram antes de a pandemia fechar cinemas. Realizado por Amanda McBaine e Jesse Moss, a obra acompanha um dos eventos que impactam milhares de adolescentes todos os anos nos EUA – vários estados promovem um programa conhecido como Boys State (ou Girls State, para meninas) para estimular uma nova geração de líderes políticos. Cada evento recebe centenas de alunos indicados pelas suas escolas e lá eles simulam o processo democrático estadunidense, desde a formação de partidos até a eleição de um governador.

A produção acompanha o evento masculino do Texas, realizado em junho de 2018 na cidade de Austin. A organização é realizada pela Legião Americana, um grupo de veteranos de guerra, que propõe formar líderes que realmente saibam inspirar e motivar pessoas. O curioso é que após a seleção, a recepção e a instrução dos adolescentes, o desenvolvimento é praticamente todo entregue a eles. Forma-se então uma grande comunidade de meninos que precisa seguir regras pré-estabelecidas para encontrar seus representantes perante a sociedade recém-formada. Não à toa, a proposta se assemelha ao clássico romance de 1954 “O Senhor das Moscas” de William Golding. A história que relata uma tentativa de autogoverno por um grupo de garotos isolados gerou adaptações cinematográficas em 1963 e 1990, além de inspirar outros projetos como “Monos” de 2019.

A narrativa se torna superficialmente banal uma vez que segue os mais promissores candidatos a governador e suas trajetórias até a eleição. No entanto, como se trata de uma representação próxima da sociedade americana – a maneira que eles se organizam e tratam de assuntos sensíveis, como o direito ao aborto e a liberdade de expressão-, inspira e assusta ao mesmo tempo. Os rachas e as intrigas entre os meninos são inquietantes ao se assemelharem à política dos adultos. Se por um lado esclarece o processo democrático, por outro o filme preocupa pela fragilidade demonstrada. De qualquer forma, os jovens trabalham para exercer seus próprios valores seguindo as regras democráticas, o que pode ser visto com otimismo ou pessimismo dependendo da sua posição.

Diferentemente de como o estilo aparenta transparecer, documentários possuem autores e visões pré-estabelecidas, mesmo quando propõem acompanhar um fato real. Documentários possuem roteiros pré-escritos. Portanto, não devem ser interpretados como a perfeita reprodução da realidade, como uma peça jornalística. Desse modo, é difícil capturar que tipo de influência Amanda e Jesse tiveram no andamento do evento. A simples presença de uma câmera apontada para um adolescente, e não para o outro, poderia interferir no processo. Isso é mais comum em documentários de estilo participativo, como “Democracia em Vertigem“, e menos nos de estilo expositivo, como “A Juíza“, mas uma linha argumentativa e uma perspectiva sempre estão presentes. Um dos lados positivos dessa liberdade autoral é que a possibilidade de poder ser montado para entreter e emocionar o público propositalmente, sem ser demasiadamente refém dos fatos cobertos. Esta obra não só provoca discussões pelos momentos e “arcos” dos seus principais personagens, mas de certa maneira acaba também divertindo como um reality show.

Aos dezessete anos, muitos adolescentes ainda não têm maturidade qualquer para compreender a complexidade das dinâmicas sociais. Assim, em “Boys State” a maioria só está brincando, ou pior, só repetindo o que eles acham que deve ser dito na política. Com perplexidade, vê-se um bando de jovens homens brancos com atitude “decidindo” sobre controle de armas e aborto, além de flertar com o racismo e outros preconceitos como estratégia para ganhar. Por outro lado, o evento permite que muitos aprendam na prática o que não aprenderiam de outra forma, e felizmente ainda há alguns poucos virtuosos que compreendem plenamente o que o processo democrático significa e mantêm-se otimistas.

Impecavelmente executado, o documentário destaca importantes questões relacionadas à democracia a partir dos temas e discussões selecionados para compor a narrativa. Pode ser assustador concluir que os problemáticos pensamentos predominantes poderão se transformar em (mais) ações concretas para a sociedade quando esses jovens se tornarem adultos. No entanto, resta alguma luz para que alguns realmente preocupados com a manutenção da democracia e a construção de um consenso, e que valorizam a união e o desenvolvimento íntegro de suas comunidades, surjam como próximos líderes.

William Sousa
@williamsousa

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