Série da Netflix arrisca ao recomeçar uma história contada com sucesso recentemente, mas joga seguro ao fazer não mais que o necessário para manter seus espectadores interessados.
Refazer ou rebootar algo de sucesso lançado há pouco tempo pode não ser uma decisão acertada, visto que comparações acabam se tornando inevitáveis. Ainda assim, a curiosidade despertada, mesmo que possivelmente negativa, é um fator a ser levado em conta. A série da Netflix “Expresso do Amanhã” busca capturar esse possível interesse do público que conhece as obras anteriores, mas aposta em seguir caminhos bem diferentes para manter os espectadores interessados em sua trama.
O quadrinho francês “O Perfuraneve” é a obra precursora, mas muitos devem conhecer a história do trem socialmente estamentado vagando pela Terra congelada através do filme de 2013 dirigido pelo sul-coreano Bong Joon-Ho. Funcionando perfeitamente como uma alegoria estilizada (do visual ao roteiro), o longa nos introduz a uma metafórica luta de classes prestes a explodir, com alguns pontos de virada que nos fazem refletir bastante. Já na obra da Netflix, o que vemos logo no episódio piloto é um cuidado em respeitar certos padrões visuais que Bong Joon-Ho criou (ele também é produtor executivo da série), mas também uma certa urgência em enveredar por caminhos diferentes, para que o público não perca o interesse na produção.
Podemos observar duas tramas distintas que movem os primeiros episódios da série: a iminente revolta dos desfavorecidos do Fundo (ou Cauda) contra a administração do trem, e a investigação de um assassinato obscuro, diretamente relacionado com o Sr. Wilford, criador e suposto maquinista do trem. Circulando entre essas narrativas, estão os protagonistas Andre Layton (Daveed Diggs), um fundista e o último investigador da Terra, que acaba ganhando o título risível de “detetive do trem”, e Melanie Cavill (Jennifer Connelly), porta-voz da administração e dos desejos do Sr. Wilford.
O primeiro ano de “Expresso do Amanhã” praticamente divide-se em duas séries distintas. A primeira abusa do estilo whodunnit para preencher vazios suficientes e entregar a quantidade de episódios necessárias para fechar a temporada. Pouco acontece além da investigação em si, com muito tempo gasto para resolver o crime, mas pouquíssimo investido em preparar o terreno para o que viria depois da solução. A segunda volta às raízes da história, desenvolvendo o conflito de classes e enfim dando vida à papéis secundários, como Josie (Katie McGuinness). O episódio 05 pontua muito bem essa transição. Um julgamento filmado de forma magistral, com personagens de todas as instâncias do trem fazendo a história acontecer. Cada um tem sua importância, mas o destaque ficou com LJ Folger (Annalise Basso), entregando uma jovem psicopata com carisma e atuação grandiosas, sobretudo perante o tempo de tela que lhe é dado.
Vale ressaltar como ponto positivo a forma como a luta de classes evolui na série. Não importa quanta seriedade seja imposta na trama, é impossível ignorar a necessidade de uma suspensão de descrença para que ela funcione. Entretanto, é possível notar uma abordagem muito mais “pé no chão” de como a sociedade funciona – ainda que desigual, mas qual não é em nosso mundo? -, especialmente se comparada à alegoria extrapolada apresentada no filme de 2013. Os extremos entre a Primeira Classe e o Fundo seguem claros, mas novas nuances e camadas surgem por intermédio das Segunda e Terceira classes, profissionais mais privilegiados, como médicos, e trabalhadores mais “braçais”, como faxineiros, respectivamente. Cada estamento tem suas vontades e necessidades, o que torna o conflito bem mais um complexo do que apenas uma batalha sangrenta indo do ponto A ao ponto B.
Contudo, para chegar ao ápice de sua qualidade, “Expresso do Amanhã” conseguiu a proeza de apresentar um ritmo assustadoramente cansativo em seus primeiros episódios, mesmo quando a trama estava sendo acelerada. Pode soar estranho, mas quando a série focou no mistério do assassinato – que acabou se solucionando com a facilidade de um quebra-cabeça de 4 peças -, a investigação não empolgava, e os personagens secundários tinham pouquíssimo tempo de tela, sobrando o trabalho árduo de cativar o público para um Layton pouco inspirado e uma Melanie incapaz de estar em todas as cenas ao mesmo tempo.
Felizmente, este foi um mal necessário para que a produção se colocasse nos trilhos (ha!) ao mirar no que realmente importava. Coadjuvantes seguem sendo esquecidos – ainda que menos – e Daveed Diggs consegue entregar apenas uma ou duas atuações dignas por toda a temporada. Mas a forma como os eventos escalam, adicionando decisões corajosas e plot twists marcantes, fazem com que “Expresso do Amanhã” ao menos atinja as expectativas e ateste aos duvidosos que merece, sim, existir. E continuar existindo.