Mais uma produção brasileira a chegar no catálogo da Amazon Prime Video, "Sonhadores" estabelece como a arte pode ser libertadora para todo tipo de identidade e personagem, ainda que enfrente limitações narrativas.
Fluidez pode ser a palavra que sintetiza as propostas da minissérie “Sonhadores” filmada em Salvador sob o comando da diretora e roteirista Julia Ferreira (“O Menino e o Louco“). Ela aparece na trama narrada pela perspectiva de Rafa (Brunno Pastori), um garoto de quatorze anos que passa pela adolescência lidando com o bullying na escola, a descoberta da sexualidade, a busca por sua voz artística e a separação dos pais Miguel (Fernando Alves Pinto) e Angela (Aicha Marques). Além disso, também se expressa na linguagem que remete ao realismo fantástico e entrelaça diferentes formatos de imagem. Porém, o encontro entre conteúdo e forma não sustenta uma unidade contínua por todos os oito episódios.
Imediatamente notamos que o próprio protagonista é fluido. Rafa não é um indivíduo que tenha uma identidade de gênero rígida, já que ele se questiona se sente atração por homens e/ou mulheres e se veste de forma andrógina (unhas pintadas, maquiagem nos olhos e sempre roupas escuras). Na cena de abertura, presenciamos a encenação de uma performance musical pelo personagem com adereços e posturas que lembram um astro do rock e retratam duas facetas: o desejo de explorar uma vida artística, ainda que não saiba como, e sua capacidade de mutação, exemplificada pela sugestão de que teria o mesmo destino trágico de seus ídolos musicais. Tal maleabilidade transformadora também se manifesta nas suas mudanças corporais (raspar as sobrancelhas) e de vestimentas (usar um cachecol colorido).
Nos primeiros episódios, a narrativa possui a fluência para transitar entre distintos núcleos. A experiência na escola, onde desenvolve uma amizade importante com Anita (Giulia Nunes), dá seu primeiro beijo e sofre com a violência de valentões homofóbicos, se conforma no “coming of age” de amadurecimento e ainda expõe o preconceito de gênero. Por outro lado, a vivência em casa reserva a Rafa os desafios de encarar a separação dos pais, especialmente por conta do afastamento de Miguel, um desenhista, roqueiro e sem emprego formal que tem ótima relação com o filho e estimula o consumo e produção de arte. Mesmo que haja uma afinidade especial entre eles, o garoto também encontra afeto na mãe, uma dona de casa convencional que logo se transforma ao embarcar numa jornada de autonomia trabalhando fora de casa.
A condução estilística dos episódios segue a fluidez identitária do protagonista e encontra maneiras de potencializá-la. O design da residência demonstra a versatilidade dos estilos artísticos, que variam do gótico com os cosplays de “O Corvo” e “Edward: Mãos de Tesoura” feitos por Rafa; das citações cinematográficas a “Um Corpo que Cai“, “Laranja Mecânica” e ao Expressionismo alemão em quadros na parede; das menções a cantores e cantoras como Raul Seixas, Janis Joplin e Jimi Hendrix e bandas de rock como Beatles e Pink Floyd; e com uma combinação inusitada da trilha sonora também composta por Novos Baianos e Pepeu Gomes. Em certos momentos, a narrativa funde suas próprias imagens a recortes, desenhos, fotografias e sonhos/alucinações como acontece na sequência em que confronta os agressores do colégio.
Outros aspectos fluidos envolvem o segmento dos amigos de Miguel, que têm sua dinâmica concentrada num bar específico. A partir da narração em voice over de Rafa, conhecemos os incomuns Monstro (Mário Bezerra), Marcão (Amós Heber), Bola (Rodrigo Luna) e Zinho (Antonio Pitanga), donos de personalidades muito singulares. Entretanto, são as interações desses personagens que intensificam o recorte especial de Julia Ferreira: o desenrolar não acompanha uma trama clara para eles, mas somente o cotidiano comum em que se divertem bebendo e jogando, conversam sobre amenidades e brigam por motivos pueris ou sérios. Logo, vemos a rotina diária se desenvolvendo não nos cartões postais mais conhecidos de Salvador, mas no ambiente underground e alternativo de uma cidade que também vive do rock.
Com o transcorrer dos capítulos, algumas sacadas interessantes são inseridas para dinamizar a história. A narração em voice over alterna entre a exposição necessária e a expressão simbólica dos anseios do protagonista; e o tradicional “previously” das aberturas de episódios com o resumo anterior é ressignificado para propor novos elementos para uma cena já vista. Apesar disso, o foco da história se concentra no conflito aberto pela separação de Miguel e Angela e em como o fato prejudica a vida do homem, algo que compromete igualmente a própria obra. De um lado, os acontecimentos ficam repetitivos e insistem na dificuldade do personagem em recomeçar sem tantas variações dramáticas; de outro, as demais subtramas que poderiam ser desenvolvidas explorando mais aspectos e temas são marginalizadas, principalmente a jornada de autoconhecimento de Rafa.
Em certa medida, essa decisão do roteiro acarreta a resolução apressada de alguns pontos de conflito ou a suspensão de embates necessários. Dentre eles, a negligência de um problema na escola que sugeria maiores consequências; o encontro do personagem central com mais um espectro da sexualidade que acontece abruptamente; e a conclusão dos atritos de Miguel com outras pessoas que ocorre de formas convenientes. Ainda assim, outra parcela do desfecho de Rafa encontra sua potencialidade ao compreender como a arte faz parte de sua existência e o ajuda a lidar com dramas individuais e familiares. Mesmo que a unidade entre forma e conteúdo tenha suas irregularidades, “Sonhadores” é uma minissérie consciente da fluidez de nossas identidades e da possibilidade da linguagem também considerá-la.