Utilizando a Guerra do Vietnã como um pretexto para tratar a desigualdade racial, novo filme do diretor Spike Lee é mais atual do que nunca ao conseguir balancear crítica com um roteiro consistente.
Hollywood apresenta a Guerra do Vietnã como uma guerra de brancos. Sylvester Stallone em “Rambo” é o maior dos exemplos. Por outro lado, os negros eram apenas 11% da população americana, mas nas tropas do conflito, eram 32%. Enquanto os soldados lutavam por direitos que não tinham, em solo americano, Martin Luther King era assassinado no Memphis, Tennessee. Essa relação entre os traumas de guerra com a desigualdade racial na América é o mote de “Destacamento Blood”, novo filme do diretor Spike Lee (“Infiltrado na Klan”) para a Netflix.
A trama é baseada na história de Paul (Delroy Lindo), Otis (Clarke Peters), Melvin (Isiah Whitlock Jr.) e Eddie (Norm Lewis), quatro veteranos de guerra negros que voltam ao Vietnã com uma autorização do Pentágono e do governo vietnamita para buscar os restos mortais do seu comandante, Stormin’ Norman (Chadwick Boseman). Ele morreu em guerra e fazia parte dos Bloods, como eles se chamam. Além disso, durante a batalha, o grupo enterrou um baú lotado de ouro com o desejo de um dia, levar de volta o que já foi dos americanos. A conexão entre eles foi criada na selva em campo de batalha e é perceptível a química entre todos.
O filme é dividido em três partes: o reencontro dos veteranos, a busca pelo ouro e a fuga. O roteiro, que passou por quatro mãos, foi escrito originalmente por Danny Bilson e Paul DeMeo, ambos com histórico de criação de texto para vídeo games, mas o Lee e Kevin Willmott (“Infiltrado na Klan”) também trabalharam na história.
A guerra acaba, mas não na memória dos soldados. Todos no grupo enfrentam transtorno do estresse pós-traumático, mas para Paul, o caso é mais complicado. Quando seu filho David (Jonathan Majors) encontra o grupo e pede para participar da missão, fica escancarado que o relacionamento dos dois anda conturbado.
Sem deixar sua proposta crítica de lado, ao mesmo tempo em que anda com a história, Spike Lee apresenta imagens reais da guerra e personagens importantes. Tudo que serve este conceito de documentário, é mostrado em proporção de 4:3, assim como as cenas de flashback durante a guerra em 1971. Nestas cenas, o diretor acerta ao colocar os atores visualmente como estão em 2020, sem precisar de um rejuvenescimento como foi feito em “O Irlandês”, de Martin Scorsese. É fácil de entender e não passa a sensação de estranhamento. Quando retorna para a história atual, o filme retoma o formato widescreen.
O diretor de fotografia Newton Thomas Sigel (“Bohemian Rhapsody”) realiza um belíssimo trabalho criando diferentes tratamentos de cores conforme a época em que a cena foi filmada. As cenas de guerra são muito bem feitas, mostrando também as dificuldades que a selva impunha aos combatentes. Mostra como o Vietnã também foi devastado, afinal a versão americana é sempre deturpada com uma dose extra de patriotismo. Além disso, são diversas as homenagens a “Apocalypse Now”, de Francis Ford Coppola, em especial com um trecho da ópera de Richard Wagner, Ride of the Valkyries, enquanto seguem na busca do tesouro.
O compositor Terence Blanchard aproveita muito das músicas de Marvin Gaye, principalmente do álbum What’s Going On, em que utiliza melodias do funk e do jazz carregando letras críticas sobre violência e a guerra. Blanchard também é pontual ao trazer elementos militares, sabendo o momento correto pra criar um clima ou amenizar a tensão.
Apesar do grupo todo contar com excelentes atuações, a história é direcionada para Delroy Lindo brilhar. O personagem vive em constante mutação de sentimentos e possui traumas que não cessam. O ator possui duas cenas com monólogos que são emocionantes – sabendo disso, Lee cria um cenário perfeito para sua performance com movimentação em selva durante um plano fechado no rosto de Lindo. É incrível ver como suas palavras transmitem o horror e a sensação de que a guerra ainda não acabou na sua cabeça.
Muhammad Ali abre o filme com uma frase contra a Guerra no Vietnã. “Minha consciência não me permite atirar em um irmão. Por que atiraria neles?”. Mesmo falando sobre um conflito do passado, “Destacamento Blood” é um filme muito atual. Após a batalha, a “gratidão” do governo veio apenas como brutalidade da polícia americana. Semanas após a morte de George Floyd, homem negro de 46 anos assassinado por um policial branco na cidade de Minneapolis, é óbvio de que muitas coisas não mudaram. Seja no Vietnã, em Memphis, em Minneapolis, em São Paulo ou no Rio de Janeiro. Não importa o lugar ou a época: vidas pretas importam e Spike Lee sabe muito bem representar isso em tela.