Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 25 de maio de 2020

Dias Sem Fim (Netflix, 2020): o ciclo vicioso do crime

Drama frio, que lembra "Moonlight" e mostra o submundo do crime por dentro.

Os Estados Unidos têm a maior população carcerária do mundo com cerca de 2.3 milhões de presos, de acordo com dados da Human Right Watch, dos quais 33% são negros, apesar destes representarem apenas 13% dos adultos no país, segundo o Pew Research Center. Esses são dados impressionantes que não foram colocados em letreiros ou narrações em off de “Dias Sem Fim”, mas são apresentados a cada segundo da história. E, mais do que meramente mostrar essa realidade, o segundo filme de Joe Robert Cole (“Amber Lake”) na direção busca desnudar os motivos que levam a essas estatísticas. 

Na trama, Jahkor (Ashton Sanders) é um jovem adulto que sonha em se tornar um famoso cantor de rap. Ele se sustenta através de roubos e acaba sendo condenado à prisão, onde terá o dia inteiro e a noite também, como no título em inglês “All Day and A Night”, para vasculhar a sua vida e os caminhos que o levaram até ali. 

A narrativa não linear passa pela infância de Jahkor, na qual ele não teve tempo de ser criança, permanentemente rodeado pela violência nas ruas e em casa, e vai até cerca de um ano antes cometer o crime pelo qual foi condenado à prisão perpétua. Igreja, drogas, amigos, armas, trabalho, namoradas, gangsters e música fazem parte do mosaico que compõe a vida do jovem rapaz. Nada muito diferente de periferias desassistidas de qualquer grande cidade.

O elenco conta com Jeffrey Wright, que costuma brilhar na série “Westworld”, mas entrega aqui um trabalho abaixo daquilo que é capaz. Ele interpreta J.D., o pai do protagonista e par de Delanda, vivida por Kelly Jenrette, que parece mais jovem à medida que o tempo no filme vai avançando. Já no núcleo jovem, temos o trio Lamark (Christopher Meyer), T.Q. (Isaiah John) e Shakira (Shakira Ja’nai Paye), que representam os caminhos possíveis para o Jahkor, da tentativa de mudança, do crime e do amor.

Contudo, todos os holofotes estão apontados para Ashton Sanders encarnando Jahkor. Sua performance lembra (e muito) o trabalho em “Moonlight”, no qual vive o protagonista Chiron na adolescência, que também é introspectivo e com uma raiva crescente dentro de si. Sanders consegue imprimir uma personalidade crível e forte, mesmo que seu corpo seja magro e não muito imponente. Os cacoetes de Jahkor e seu modo ameaçador de andar, como que para indicar que pode estar carregando uma arma, são boas composições, mas que se perdem pelos outros traços lembrarem demais seu personagem anterior.

Os ecos de “Moonlight” são ainda sentidos na fotografia, mais no que se refere ao trabalho de iluminação e cor do que nas belas composições, mas é comum que obras vencedoras do Oscar de Melhor Filme criem ou abram espaço para outras produções semelhantes em temática ou realização. Só estranha o fato de que Joe Robert Cole, que também assina o roteiro do filme, não tenha conseguido emplacar um diálogo verdadeiramente marcante, como ele fez ao co-escrever “Pantera Negra”. 

Talvez Cole tenha se dedicado mais a direção e isso gerou bons frutos com pelo menos duas cenas acima da média: uma onde o protagonista anda de bicicleta pelo bairro e outra de um belo plano-sequência em uma festa. Momentos realmente bons, que não são apagados, por um ou outro ponto baixo, como em uma cena de execução mais ao final do filme.

“Dias Sem Fim” é um drama frio e bem realizado que pode levar a reflexões importantes, de um diretor e roteirista que ainda tem muito a escrever e a mostrar. Fala sobre o ciclo de violência e criminalidade, e também sobre a tentativa de interromper esse ciclo e quebrar a roda.

Hiago Leal
@rapadura

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